Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Ninguém mais tem cara por inteiro

‘Não, não, Cazuza, o Brasil não pode mais mostrar a sua cara!’

Homem vestido de Papai Noel coloca máscara (Foto: Josep LAGO / AFP)
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Quero ver o rosto dessa gente, os lábios grossos, os lábios finos. Saber se estão chorando ou sorrindo. Por detrás de máscaras, já não sei mais a diferença de um boliviano para um colombiano, de um paraguaio para um peruano. Vejo os olhos puxados e pergunto se é japonês, chinês ou coreano.

Não quero ver apenas os olhos, alguns bonitos, outros esquisitos. Redondos, puxados, esticados. Vejo apenas um olho verde ardósia, azul piscina, preto jabuticaba. Imagino os narizes, finos, grossos, grandes, arrebitados. Quero ver também o queixo, as espinhas, a pele de pêssego das propagandas do Nivea, da Natura, do Dove.

As máscaras cobrem a beleza e a feiura, cobre os dentes brancos e os banguelas. Máscaras de todas as cores, formas, tecidos, estampas. Gosto das brancas, mas gosto das pretas. Acho ridículas as do Batman, da Mulher Maravilha, boca imitando sorriso. Máscaras enormes que cobrem meio rosto, máscaras pequenas que deixam o nariz de fora.
Xadrezes, listradas, de bolinhas. Combinando com a saia, com a calça, com a calcinha.

Ninguém mais tem cara, cara por inteiro. À mostra, bochechas rosadas, sardinhas, cicatrizes. De noite, na TV, as repórteres da Globo com suas máscaras Lupo, são todas iguais. Não consigo mais saber quem é quem. Alguém pode me dizer quem é Graziela Azevedo e quem é Andreia Sadi? Alguém pode me dizer quem é Caco Barcelos e quem é
Alberto Gaspar?

Já percebi que muitos pretos usam máscaras brancas e muitos brancos usam máscaras pretas, transformando o mundo num imenso Botafogo.

Acabou o sorriso amarelo, o sorriso Colgate. Acabou o beijo na rua, a lambida no sorvete, o pedreiro na siesta palitando os dentes, o menino tirando meleca, a barba bem feita, a bochecha rosada, a adolescente roendo unhas.

Quero ver o seu rosto, rosto da preta de Abidjan, de Brazzaville, do Zaire, do Zanzibar. O rosto branquinho da menina de Tóquio, de Kyoto, de Seul, de Pequim. Quero ver o rosto da morena de Angola, da morena do mar, da preta, preta
pretinha.

Quero ver o rosto da índia Ianomâmi, da índia Macuxi, da índia Guarani, de Ceci e Peri. Quero ver as rugas da idosa, o furinho no queixo da menina, uma lágrima escorrendo, um atchin!

Não, não, Cazuza, o Brasil não pode mais mostrar a sua cara!

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