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Opinião

Naturalização da pandemia, o pior dos mundos

A naturalização é o nome elegante da indiferença, da insensibilidade e do abismo social

Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real
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Gilberto Maringoni
Artur Araujo

Há um estranho paradoxo no país. Vivemos a maior tragédia sanitária de nossa História, com quase 100 mil vítimas e nos aproximamos de 3 milhões de infectados. Diariamente, cerca de 1.400 brasileiros perdem a vida, o que corresponde a um óbito por minuto! A doença significa hecatombe econômica, perda de empregos, quebradeira de empresas, desespero, fome e marginalidade. O paradoxo está na crescente naturalização da tragédia. Ela está sendo assimilada como parte da paisagem brasileira.

Algo semelhante ocorre com a violência. O Brasil é um dos países mais perigosos do planeta e os indicadores chegam a ser superiores aos de países em guerra. A brutalidade, assim como o novo coronavírus, tem aqui sua dramática PPP. Ou seja, atinge preferencialmente pobres, pretos e periféricos. Apesar do drama humano, são tristezas com reduzida influência em círculos de poder e dinheiro de uma sociedade estupidamente desigual. Pandemia e violência geram estatísticas mais do que lágrimas e indignação.

A naturalização é o nome elegante da indiferença, da insensibilidade e do abismo social. A naturalização marca em cheio o mundo político-institucional. Apesar da abnegação dos profissionais de saúde pública e de poucas e honrosas exceções, a naturalização atinge o poder central, com o inesquecível brado “E daí?”. A indiferença alcança ainda instituições de Estado, partidos políticos e a grande mídia. Assistimos cada vez mais o noticiário sobre a saúde ser deslocado para o rodapé dos veículos e a perder importância na agenda nacional.

O panorama é pautado pelo negacionismo presidencial e de seus generais de escrivaninha, mais interessados em uma boquinha do que no interesse público. São sócios do genocídio, como bem detectou o ministro Gilmar Mendes.

Que a extrema-direita faça isso, nada a estranhar. Um governo com fortes componentes fascistas tem historicamente na morte uma de suas razões de existir. Mas que a oposição progressista – que produziu a Carta de 1988, que garantiu a existência do SUS e que sempre se bateu pela vida – se apresente ao país priorizando formação de chapas eleitorais, articulações para 2022, brigas miúdas entre lideranças e a preferência por lateralidades é algo de se espantar. Vale repetir: exceções existem.

Por que isso se dá? Do lado presidencial, a percepção é clara. A pandemia seria uma “gripezinha” que se cura com cloroquina, vermífugos ou charlatanices variadas. O importante é cuidar da economia, como se essa se dissociasse da vida. Na verdade, a preocupação é com o grande capital e ponto.

Do lado da oposição, a percepção é contrária. A dimensão quase totalizante do problema parece esmagar comandos partidários. Durante a crise de 2008, dizia-se nos EUA que certos bancos seriam “grandes demais para quebrar”. Diante de seus pesos definidores na economia, o Estado não poderia deixá-los falir. Parece haver agora, face à pandemia, a sensação de que esta seria “grande demais para se enfrentar”, gerando uma impotência que forçaria todos a se desviarem do tema em busca de tarefas tangíveis para seguirem “fazendo alguma coisa”.

A pandemia é e será por tempo ainda indefinido o principal problema político do país. Se o vírus faz parte da realidade objetiva, o avanço ou recuo da doença depende de ações humanas. Ou seja, não naturais. Defesa do isolamento social, dinheiro nas mãos das pessoas, financiamento para empresas, injeção maciça de dinheiro no SUS, testagens em massa e outras são ações insubstituíveis de Estado. Urgentes e de Estado, não de mercado.

Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e autor, entre outros, de Cinco mil dias – O Brasil nos tempos do lulismo (Boitempo), com Juliano Medeiros

Artur Araújo é consultor em gestão pública e privada, e assessor da Federação Nacional dos Engenheiros

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