Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Nas escolas, fazem com os estudantes negros o mesmo que fizeram com o Lucas no BBB

O que o Brasil inteiro presenciou nos últimos dias é sentido na pele e na alma por meninas e meninos negros ainda na educação infantil

Foto: Reprodução TV Globo
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Não gosto de Big Brother. Não tenho paciência. Entendo o programa como um episódio lamentável de degradação humana. Acontece que, dada a repercussão, não é necessário assistir ao BBB para saber o que se passa na “casa mais vigiada do País”. Basta acessar os jornais, as redes sociais, os programas de TV, ficar alguns minutos na fila da padaria para saber o que fazem e dizem os participantes que se lançam na corrida por 1,5 milhão de reais. Não se fala em outra coisa. E é em razão do furor causado pela atração da Globo que soube dos momentos de violência psíquica sofridos pelo ator, rapper e militante Lucas Penteado, que em 2015 participou ativamente do movimento contra o fechamento das escolas estaduais de São Paulo.

Ao longo de duas semanas, Lucas foi aviltado, silenciado e desprezado, sobretudo por Karol Conká, Lumena e Projota. Lucas foi taxado de violento, assediador, um verdadeiro “monstro”, que levou Projota, inclusive, a manter uma faca escondida caso houvesse necessidade de se “defender” do jovem paulistano.

Durante um jantar, Karol Conká não permitiu que Lucas se sentasse à mesa e disse: “Quero comer na paz do Senhor, entendeu? Não quero que você fale enquanto estou comendo”. A fala da cantora e apresentadora curitibana não gerou qualquer reação dos demais participantes, imperando um silêncio conivente diante de tamanha afronta. As imagens que mostram Lucas sozinho na mesa são constrangedoras.

Se na casa não houve qualquer indignação ou movimento em defesa da dignidade do Lucas, do lado de fora, foi diferente. O público não gostou do que viu. Mais do que isso, as imagens transmitidas em tempo real causaram angústia e sofrimento em quem as assistia. Foi o que relataram anônimos e famosos como Taís Araújo, Fernanda Paes Leme, Teresa Cristina e tantos outros telespectadores assíduos. Em um post no Instagram, Lázaro Ramos disse não saber se conseguiria assistir ao reality até o fim, uma vez que esta edição estava provocando “gatilhos” nele.

A repercussão negativa foi tão grande que, segundo Maurício Stycer, colunista do UOL, o BBB 21 passou a ser motivo de preocupação por parte dos patrocinadores, que ficaram temerosos em expor suas marcas num programa com sucessivos episódios de tortura psicológica. A sequência de “apedrejamento moral” a que Lucas foi submetido teve fim na manhã do último domingo, quando ele desistiu do programa e deixou a casa para alivio de muitos fãs do reality dirigido por Boninho.

Iniciei o texto falando a respeito do meu pouco apreço pelo BBB. Sendo assim, alguns podem perguntar os motivos que me levaram a escrever sobre o programa exibido há vinte e um anos. Explico. Os episódios de abuso vividos por Lucas ao longo de duas semanas são a realidade de grande parte dos estudantes negros nas escolas, o que pode ser comprovado com estatísticas e estudos realizados por pesquisadores que se dedicam a discutir racismo e educação.

O que o Brasil inteiro presenciou nos últimos dias é sentido na pele e na alma por meninas e meninos negros ainda na educação infantil. Na carta que escrevi endereçada à Titi Gagliasso, relatei que na pré-escola, por diversas vezes, meus colegas não me chamavam para brincar ou partilhavam o lanche comigo em razão da cor da minha pele.

Sei bem o que o Lucas sentiu quando foi proibido de partilhar uma refeição com os “brothers”. Essa experiência pessoal vai ao encontro do estudo realizado pela pesquisadora Eliane Cavalleiro em escolas municipais da cidade de São Paulo. A partir de um trabalho de campo, Cavalleiro constatou que, além da solidão e da exclusão, “existe um tratamento diferenciado e mais afetivo dirigido às crianças brancas (…). O contato físico é mais escasso na relação professor/aluno negro. Ao se aproximarem das crianças negras, as professoras mantêm, geralmente, uma distância que inviabiliza o contato físico. (…) Com as crianças brancas, as professoras manifestam maior afetividade, são mais atenciosas e acabam até mesmo por incentivá-las mais do que as negras”.

Em outro estudo importante, realizado em uma escola pública da cidade de São Paulo, a educadora Marilia Pinto de Carvalho percebeu uma incidência mais acentuada de fracasso escolar entre os meninos negros, decorrente em grande medida dos estigmas e estereótipos atribuídos a eles por parte dos professores. Assim como Lucas, as crianças negras do sexo masculino eram tachadas de indisciplinadas e acusadas de não cumprir as regras. A professora da USP verificou que, na instituição em questão, havia uma presença maior destes nas salas de reforço, entre os reprovados e também entre aqueles que mais recebiam punições regularmente. Embora a pesquisa tenha sido realizada no início dos anos 2000, ela está em sintonia com os dados apresentados pela Fundação Tide Setúbal em 2019. De acordo com o levantamento feito em turmas do 5º ano de escolas municipais da capital paulista, os meninos negros aparecem em último lugar no que diz respeito ao desempenho escolar.

O percurso de Lucas dentro da casa e a caminhada dos estudantes negros nas instituições de ensino se cruzam também quando se trata do silêncio e da omissão. Da mesma maneira que não houve ações contundentes por parte dos participantes do programa para tentar frear as atitudes desumanas, principalmente de Karol Conká, nas escolas, a violência que acomete crianças e jovens afrodescendentes é vista muitas vezes como algo que não merece atenção por parte de professores e gestores. O silêncio tem sido uma arma poderosa para a perpetuação do racismo nesses espaços.

Outra analogia que pode ser feita com a participação de Lucas no BBB e as trajetórias dos estudantes negros diz respeito à permanência no ambiente escolar. A violência, o desprezo, o isolamento e o sentimento de inadequação que determinaram a saída do Lucas também são motivadores para que a juventude negra deixe a escola antes de completar os estudos. De acordo com o IBGE, somente em 2019, 10 milhões de jovens com idade entre 19 e 24 anos não concluíram o Ensino Médio. Desse total, 70% eram afro-brasileiros.

Partindo dos dados apresentados, torna-se urgente propor reflexões e ações que visem fazer da trajetória escolar de crianças e jovens negros uma experiência de êxito e felicidade. Talvez seja uma utopia de minha parte, mas a mesma indignação em torno da violência de que Lucas foi vítima, durante longos dias, deveria ser canalizada para a promoção de uma educação antirracista, que garanta a todos e todas condições igualitárias de ingresso e permanência nos espaços escolares.

Conforme escrevi anteriormente, as violências sofridas por Lucas no BBB têm sido experimentadas cotidianamente por meninos e meninas negras no interior das escolas. No último domingo, ficou claro que, ao sair do confinamento, Lucas ganhou uma nova chance, ao que parece, bem melhor do que ele vislumbrou quando aceitou participar do reality show. Na maioria das vezes, jovens como ele não têm a mesma sorte.

Enquanto educadores e gestores, precisamos refletir se estamos sendo Karols, Lumenas e Projotas para os estudantes negros ou se agimos em acordo com as manifestações de apoio recebidas por Lucas logo que ele deixou a casa.

É uma pergunta que precisa ser respondida, uma vez que ela impacta diretamente na sociedade que queremos ajudar a construir.

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