Cultura

Não se pode cancelar uma cultura inteira ou prejudicar os russos só por serem russos

Felizmente, essas decisões absurdas não representam o “modus operandi” da maioria das instituições artísticas. E devem ser denunciadas

(Foto: Fernando Ruz/Divulgação)
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Nas últimas semanas, após a invasão da Ucrânia por parte do exército russo, voltou à tona um assunto que merece algumas reflexões: pode o artista se eximir de se posicionar politicamente durante conflitos em virtude de uma arte que, supostamente, estaria acima de qualquer suspeita?

Assistimos recentemente a um cancelamento global do regente russo Valery Gergiev, declarado e antigo apoiador de Putin, após ele ser cobrado a se posicionar contra a guerra. Ele foi demitido do cargo de regente-titular da Filarmônica de Munique e teve convites internacionais suspensos, na Europa e nos Estados Unidos.

O mesmo destino parecia reservado à grande cantora Anna Netrebko, que chegou a ser desconvidada por alguns teatros e, antes que o cancelamento atingisse uma escala mundial, anunciou a suspensão de sua atividade.

E houve outras medidas ainda mais polêmicas, como a exclusão, em Dublin, de candidatos russos em competições musicais, só pelo fato de serem russos ou até a suspensão de palestras sobre autores russos, como aquela que deveria acontecer na Universidade de Milão sobre F. Dostoiévski.

No meio de mais uma guerra absurda, como qualquer outra guerra, precisamos urgentemente tentar colocar alguma ordem nesta febre coletiva por cancelamentos, e entender até onde vai o bom senso nas decisões e em que circunstâncias se perdeu o equilíbrio lógico.

A arte e a política podem viver separadas? Minha resposta é que, na quase totalidade dos casos, não. Ao longo dos séculos, compositores e artistas tiveram suas vidas profissionais beneficiadas ou prejudicadas pela política. 

Georg F. Haendel nunca teria conseguido a fama sem a ajuda constante e consistente dos altos escalões da igreja. Mozart e Beethoven recebiam honrarias e encomendas de novas obras por parte de imperadores, arcebispos e aristocratas, e seus contemporâneos tinham seus cargos oferecidos pelos poderosos da época, com os quais precisavam conviver e, sobretudo, concordar. 

Wagner e seu sonho da “obra de arte total” nunca poderiam ter se tornado realidade sem o rico aporte do Ludwig da Bavária que, para ajudar Wagner, colocou uma inteira cidade (Munique) numa violenta crise econômica. Esses são somente alguns célebres exemplos de como música e músicos sempre se cruzaram com a política, a igreja, os nobres e os poderosos.

No século passado, o regente austríaco H. von Karajan flertou com o nazismo, algo que, em seguida, convenientemente renegou. Ele não queria ver afetada sua carreira internacional e, de fato, esse posicionamento o permitiu continuar a construção de seu império. Cabe lembrar que Karajan, além de grande artista, foi um dos maiores empreendedores na música de todos os tempos.

Gergiev deveria ter considerado que a conta de sua duvidosa amizade com Putin pudesse chegar (Foto: GEORG HOCHMUTH / POOL / AFP)

Chegamos agora ao protagonista das crônicas destes dias: Valery Gergiev, que usufruiu constantemente da ajuda política de Putin e de seus aliados políticos para o desenvolvimento de sua carreira.

Quando o presidente da Rússia invade um País soberano e quando o mundo todo (com poucas e constrangedoras exceções) repudia essa invasão, me parece sensato que as instituições que tenham relacionamentos contratuais com um declarado apoiador desse “tirano” peçam um posicionamento claro. 

Isso não afeta o legado artístico desse grande regente, que está e estará sempre disponível através das gravações, dos vídeos e dos inúmeros registros de sua arte. É o homem Gergiev que perde. E se ele decidiu apoiar-se em um político duvidoso para empreender sua escalada ao sucesso – sem negar aqui seu talento e seu trabalho – devia considerar que, um dia, talvez, a conta dessa amizade duvidosa pudesse chegar. 

É fundamental ressaltar que, pelas informações que tenho até o momento, nenhuma instituição cancelou as colaborações de Gergiev sem ter-lhe dado antes a possibilidade de fazer uma declaração contra a guerra. O mesmo está acontecendo com outros artistas que, publicamente, apoiaram o atual presidente da Rússia. 

Há muitos grandes artistas no mundo e, pessoalmente, não vejo como uma tragédia para o mundo musical uma pausa nas atividades internacionais de Gergiev por um certo período. Se pensarmos que o teatro “Alla Scala” de Milão substituiu Gergiev pelo jovem regente russo Timur Zangie – escolha simbolicamente importante, diga-se –, o interregno pode ter até alguns lados positivos.

Trata-se de um caso bem diferente daquele de Tugan Sokhiev que, sendo diretor artístico de uma orquestra em Moscou e de outra em Toulouse, na França, foi intimado pelo prefeito de Toulouse a fazer uma declaração sobre a situação atual sem ter ele jamais se manifestado a favor da política de Putin. Tal declaração significaria, para Sokhiev, praticamente escolher entre sua orquestra (ou “família”, como ele mesmo escreveu) na França e sua orquestra em Moscou. Resultado: de forma corajosa e, certamente, sofrida, ele renunciou aos dois cargos. 

Cancelar uma cultura inteira ou prejudicar os russos só pelo fato de serem russos é algo que não pode ser aceito. Não há justificativa racional para que se cancele uma palestra sobre Dostoiévski, assim como não posso aceitar que um concurso de piano envie um e-mail a todos os candidatos russos deixando-os de fora da competição.

Felizmente, essas decisões absurdas não representam o “modus operandi” da maioria das instituições artísticas e devem ser denunciadas por irem na direção contrária do que devem ser os princípios da arte e cultura que, desde sempre, uniram os povos em nome de uma mensagem global. 

Aliás, não existe símbolo mais perfeito destes primeiros dias de conflito do que o abraço emocionado entre duas cantoras, uma russa e a outra ucraniana, ao final de uma apresentação no Teatro San Carlo, em Nápoles.

Que a música seja mensageira de paz e que os artistas se comprometam mais com as questões humanitárias e se manifestem contra as barbaridades que inacreditavelmente ainda nos rodeiam no ano de 2022.

 

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