Vivi Mendes

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Advogada criminalista, formada pela USP. Foi assessora da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres de 2013 a 2016, na gestão Haddad, em São Paulo. Feminista e ativista pelos Direitos Humanos.

Opinião

Na crise do coronavírus, a democracia brasileira também está em risco

O presidente Bolsonaro aproveita o cenário da pandemia para reforçar seu projeto político de desestabilização das instituições

Jair Bolsonaro (Foto: Isac Nóbrega / PR)
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O momento em que estamos não tem precedentes. Por um lado, temos o avanço de uma epidemia global da covid-19 – uma atualização ainda mais contagiosa do coronavírus e que já ultrapassou mais de 400 mil pessoas infectadas em todo o mundo. E por outro, se já não bastasse o tamanho desta ameaça, temos também outra tensão: o que quer Bolsonaro?

Apesar da conjuntura excepcional, certos movimentos se repetem no lado sul do mapa. No Chile, se desenha um processo de saídas ainda mais autoritárias ao clima da instabilidade social existente desde as manifestações populares. Um país em que o presidente se vê isolado pela agenda política protagonizada pela oposição, surge o aproveitamento de uma crise pandêmica para iniciar uma ofensiva autoritária. No dia 18 de março, ainda no começo da crise, Sebastian Piñera decretou “estado de catástrofe” por 90 dias (período seis vezes maior do que a média dos países que estão passando pelo surto de coronavírus), acarretando na crescente militarização das ações governamentais e em duríssimas restrições na circulação de pessoas – ainda que na época do ato houvesse poucos casos confirmados no país –, assim como num clima de restrição de liberdades e garantias democráticas. É assim que o contexto político na América Latina retorna a uma antiga ameaça histórica: instabilidades políticas que puxam o gatilho de intervenções militares.

Uma parte dos brasileiros já sabia antes da eleição de 2018 que a linha política do governo Bolsonaro não seria nem pelo fortalecimento do SUS (o que poderia nos dar melhores condições para enfrentar esta crise sanitária), nem pelo respeito à democracia. Bolsonaro escolhe cotidianamente pela radicalização de seu discurso de extrema direita, mantendo a máscara de uma liderança antissistema e que engaja a sua tropa política para os seus passos seguintes. O seu discurso, ao contrário do que muitos esperavam, não vislumbra construir pontes entre os que estão envolvidos no combate à pandemia. Mas constrói minorias: aliados radicalizados pela sua narrativa ideológica e extremamente vinculada à dinâmica eleitoral.

“Por que ele está fazendo isso?”, “Só pode ser loucura!” é a reação de muitas pessoas ao assisti-lo em cadeia nacional, pedindo para que a população deixe suas residências, enquanto todas as recomendações médicas, desde a OMS à ONU, indicam o contrário. Bolsonaro está longe de ser “louco”, e agora se utiliza de uma pandemia para desestabilizar e tensionar os limites das instituições já corroídas pelas crises econômicas e democráticas que vivemos nos últimos anos.

 

Seu governo vive de instabilidades e opera sua política na tentativa de amaciar o terreno para mudanças mais duras no regime vigente. Para Bolsonaro, não bastam mudanças no regime, pois seu projeto é mudar o tipo de regime. Inclusive, a cada dia que passa, o caráter transicional de seu governo se mostra mais evidente e perigoso, expondo que seu propósito não é governar, mas transformar a ordem política do Brasil a favor das suas alianças. E assim ele oscila, provoca e afronta os demais poderes da República para ganhar terreno na ação política enquanto Chefe do Executivo; coloca em cheque os governadores para centralizar o comando e diminuir as vozes nacionais; disputa a hegemonia do seu próprio governo, enfraquecendo e deslegitimando certos ministros que não respondam ao seu núcleo mais radical de extrema direita.

As instituições, por sua vez, não reagem à altura desta ofensiva bolsonarista. Afinal, o processo histórico que levou ao derretimento de seus papéis constitucionais é o mesmo que criou “circunstâncias e condições que possibilitaram um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói”. A consequência é dramática para as grandes maiorias sociais que veem seus direitos na berlinda e o futuro de nossa moldura democrática completamente em jogo.

Bolsonaro diz que se não adotarmos a estratégia que ele apresentou “o que aconteceu no Chile vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil. Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem”. Logo, fica evidente de que não se trata de um script desorganizado, mas de uma estratégica política que, apesar de não ser consenso entre todos àqueles que o elegeram, ainda agrupa apoiadores o suficiente para mantê-lo em seu projeto político – e em seu cargo, mesmo com tantas investidas para o impeachment ou a renúncia.

A América Latina apresenta um grande histórico de intervenções autoritárias, se não podemos ser mais diretos ao chamar de “tradição golpista”. Desde o golpe norte-americano no início do século XX na Nicarágua, que depôs José Santos Zelaya; até os últimos episódios em 2019 de diversas tentativas na Venezuela, e o mais exitoso na Bolívia, que retirou Evo Morales da presidência, nosso continente vive sob ameaças. O que vemos agora em governos como o de Jair Bolsonaro é uma atualização do autoritarismo, que mesmo apresentado por meio de novas tecnologias e métodos, opera na mesma lógica de fechamento das liberdades e dos direitos políticos de nossos povos.

O vírus do golpismo e da mudança de regime está também se alastrando entre nós e pode fazer do próprio coronavírus seu vetor de contaminação. Além de termos a responsabilidade que esse momento de crise sanitária global exige, é preciso estar atento e em alerta quanto à saúde da democracia brasileira (e latinoamericana) que, convenhamos, é grupo de risco.

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