Justiça

Mulheres Negras: estudando, votando e sendo votadas na história

Recente aprovação de cotas raciais no Conselho Federal da OAB é algo a se celebrar

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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Na mesma semana em que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou cota racial de 30%, com aplicação imediata, para negros, bem como aprovou a paridade de gênero, nas chapas que concorrerem aos cargos de diretoria institucional, as lideranças republicanas estado-unidenses reconheceram sua derrota e a eleição pela primeira vez de uma mulher, negra, descendente de imigrantes asiáticos (Indianos), descendente de imigrantes caribenhos negros (Jamaicanos), como futura ocupante da cadeira de vice chefe do executivo nacional. Ambos eventos são celebráveis, uma vez que trazem à luz a potência que as possíveis dinâmicas de coalisão, informadas por gênero e raça, possuem nos processos político institucionais e político eleitoral no mundo.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovou por unanimidade a proposta de paridade de gênero, apresentada por uma conselheira do estado de Goiás, as chapas e órgãos da instituição deverão ser compostos por 50% de mulheres. Dentre as inúmeras propostas referentes às cotas raciais na instituição, foi aprovada proposta apresentada por André Costa, conselheiro do estado do Ceará, a qual determina a implementação de cotas de 30% pelo período de 30 anos, dez eleições. Ambas reservas de vagas são determinações de aplicação imediata, também em razão de votação do conselho que não vislumbrou cabimento de aplicação do princípio da anualidade, em face da urgência de promoção de diversidade de gênero e raça nas diretorias da OAB.

Da mesma forma que histórica a conquista de grupos subrepresentados na OAB brasileira, a eleição de Kamala Harris também foi um momento histórico para um país que, há poucas décadas atrás era segregacionista e aplicava a política de “separados mais iguais” em suas instituições públicas e privadas.

Kamala Harris imediatamente foi referenciada ao pioneirismo de Ruby Bridges, a primeira criança negra a estudar em uma escola dessegredada daquele país. Uma das imagens que circulou a rede mundial de computadores trazia a pequena Ruby Bridges, retratada no quadro de Norman Rokwell “The problem we all live with”, como a sombra da ex promotora de São Francisco, ex senadora da Califórnia e futura vice-presidente dos Estados Unidos da América do Norte.

As trajetórias dessas mulheres negras emblemáticas, em regra, são informadas por alta qualificação formal e o acesso à educação superior de mulheres negras naquele país é também tributário dos esforços de dessegregação encampados pela criança Ruby. Kamala Harris e demais negras, como Michele Obama, não seriam não tivessem Ruby Bridges e sua mãe, Angela Bridges, falecida poucos dias após o histórico dia do pronunciamento do resultado das eleições estado-unidenses, sido. Ademais, o direito à igual participação política de mulheres e negros, nos EUA reflete disputas violentas, que marcaram com sangue e morte a história daquele país.

Kamala Harris A primeira mulher a ser eleita vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Foto: Ronda Churchill/AFP

Percebe-se como os direitos políticos são intimamente ligados aos direitos culturais, por isso deu-se a imediata relação entre o ativismo pelo direito à educação de qualidade, dessegredada, e a conquista de posição política institucional no segundo mais alto posto do poder executivo da maior potência mundial. A história política e de acesso à educação de mulheres negras estado-unidenses leva a comparativos com a história nacional.

No Brasil, a história referencia as nativas brasileiras como as primeiras a serem alfabetizadas pelos colonizadores, conforme afirma Arilda Ribeiro e narra a assessoria de imprensa do MEC, ao mencionarem que Catarina Paraguaçu, filha de colonizador e casada com colonizador, escrevera carta de próprio punho ao religioso Manoel da Nobrega em 1561.

Apesar da autorização de educação, privada, de mulheres no Brasil remontar à reforma pombalina, de 1750/77, foi somente em 1827 que mulheres passaram a frequentar espaços públicos de educação. Aquelas escolas distinguiam as disciplinas por gênero, uma vez que apenas os homens podiam atender as disciplinas adjetivadas como mais racionais e não podiam atender as disciplinas do lar. Apesar de tais espaços de formação das filhas das elites, é sabido que a primeira escola normal do país, escola de ensino médio habilitadora de professores de educação básica, não admitia mulheres como discentes em 1835, ou seja, apenas homens eram formados no Brasil para serem professores de educação básica naquele período.

Quanto aos negros, no Brasil, tradicionalmente referencia-se à lei número um de 14 de janeiro de 1837 como primeiro indicativo de obstáculo de acesso à educação formal pública, desta parcela da população, como política de Estado. O texto da mencionada norma enunciava:

“São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.

O acesso ao ensino público, em todos os níveis, ocorreu um pouco mais tarde para os negros no Brasil, haja vista que se em 1835, enquanto mulheres frequentavam educação básica e ensino médio, direcionado para os valores morais sexistas de então, contudo acessavam o ensino formal público, aos negros, livres ou libertos, tais espaços educacionais formais públicos ainda lhes eram proibidos.

Seria, em razão da correlação existente entre educação e participação política democrática, por meio do voto, possível, indutivamente, assumir que aos negros o voto fora igualmente negado por mais tempo na história do país. Não parece ter sido, contudo, legislativamente, o ocorrido.

Alguns afirmam genericamente que, até 1934, mulheres negros pobres e analfabetos não tinham direito ao voto, contudo, possível identificar normas que permitiam voto aos descendentes de africanos, negros, antes do mencionado ano.

No período do Império, os libertos podiam votar como eleitores de primeiro grau. A Constituição de 1824 restringia o direito de voto dos libertos, nada mencionando em relação aos ingênuos, o que permite a interpretação como possibilidade de voto dos negros ingênuos em eleições de segundo grau, já naquele período.

Com a abolição do sistema escravista no Brasil, em 1888, sete anos após a promulgação da Lei Saraiva, que abolira o voto do analfabeto, os negros passaram a formalmente poderem votar, o que na prática pouco ocorreu uma vez que a maioria era analfabeta e encontrava-se liberta e alijada do exercício do direito de voto em razão da lei de 1881.

Formalmente, com a abolição do escravismo os negros conquistaram seu direito ao voto, contudo o exercício de tal direito ficou condicionado à plenitude do acesso à educação, direito que ainda lhes era negado.

De forma um pouco distinta, a conquista do direito ao voto feminino na história do Brasil referencia-se à professora Celina Guimarães Viana, apontada como a primeira eleitora do país, cuja inclusão no rol de eleitores deu-se em Mossoró, Rio Grande do Norte, em novembro de 1927.  Tal inclusão fundamentou-se no artigo 17 da lei eleitoral incidente nas cidades de Mossoró, Açari e Apodi (cidades pioneiras do país a reconhecer o voto feminino). A primeira prefeita eleita no Brasil, Alzira Soriano, chefiou o executivo de Lages, também Rio Grande do Norte.

Parece-nos, analisando as pioneiras e pioneiros nacionais, que, no que concerne ao direito de frequência a escolas, as mulheres tiveram o direito reconhecido pelo Estado um pouco antes do que os negros do país. No que concerne ao exercício do direito de voto, em razão das previsões que não proibiam os ingênuos do exercício de tal direito, contemporâneas às leis que proibiam as mulheres do exercício de voto, normas sexistas que permaneceram em vigor após a abolição do escravismo, podemos indutivamente concluir a precedência do exercício desse direito por negros, em relação ao exercício do direito pelas mulheres.

Em face desses momentos históricos recentemente ocorridos, eleição de Kamala Harris e implementação de cotas de raça e paridade de gênero na OAB brasileira, percebe-se importante observar sobre a interseccionalidade na história escrita dos e das pioneiras.

Uma das premissas teóricas metodológicas da Escola de Teoria Crítica Racial, escola de onde a categoria interseccionalidade surge, trata da invisibilidade, silenciamentos e ausências, como fonte de informação sobre dinâmicas recorrentes. O que nos leva a retomar a pergunta: e as mulheres negras? Quando elas conquistaram seus direitos a frequentar escolas e votar e serem votadas na história do Brasil? Junto a quais grupos conseguimos vislumbrar as pioneiras negras?

Continua e permanece essa mesma pergunta, que não seja por muito tempo.

Na mesma semana em que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou cota racial de 30%, com aplicação imediata, para negros, bem como aprovou a paridade de gênero, nas chapas que concorrerem aos cargos de diretoria institucional, as lideranças republicanas estado-unidenses reconheceram sua derrota e a eleição pela primeira vez de uma mulher, negra, descendente de imigrantes asiáticos (Indianos), descendente de imigrantes caribenhos negros (Jamaicanos), como futura ocupante da cadeira de vice chefe do executivo nacional. Ambos eventos são celebráveis, uma vez que trazem à luz a potência que as possíveis dinâmicas de coalisão, informadas por gênero e raça, possuem nos processos político institucionais e político eleitoral no mundo.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovou por unanimidade a proposta de paridade de gênero, apresentada por uma conselheira do estado de Goiás, as chapas e órgãos da instituição deverão ser compostos por 50% de mulheres. Dentre as inúmeras propostas referentes às cotas raciais na instituição, foi aprovada proposta apresentada por André Costa, conselheiro do estado do Ceará, a qual determina a implementação de cotas de 30% pelo período de 30 anos, dez eleições. Ambas reservas de vagas são determinações de aplicação imediata, também em razão de votação do conselho que não vislumbrou cabimento de aplicação do princípio da anualidade, em face da urgência de promoção de diversidade de gênero e raça nas diretorias da OAB.

Da mesma forma que histórica a conquista de grupos subrepresentados na OAB brasileira, a eleição de Kamala Harris também foi um momento histórico para um país que, há poucas décadas atrás era segregacionista e aplicava a política de “separados mais iguais” em suas instituições públicas e privadas.

Kamala Harris imediatamente foi referenciada ao pioneirismo de Ruby Bridges, a primeira criança negra a estudar em uma escola dessegredada daquele país. Uma das imagens que circulou a rede mundial de computadores trazia a pequena Ruby Bridges, retratada no quadro de Norman Rokwell “The problem we all live with”, como a sombra da ex promotora de São Francisco, ex senadora da Califórnia e futura vice-presidente dos Estados Unidos da América do Norte.

As trajetórias dessas mulheres negras emblemáticas, em regra, são informadas por alta qualificação formal e o acesso à educação superior de mulheres negras naquele país é também tributário dos esforços de dessegregação encampados pela criança Ruby. Kamala Harris e demais negras, como Michele Obama, não seriam não tivessem Ruby Bridges e sua mãe, Angela Bridges, falecida poucos dias após o histórico dia do pronunciamento do resultado das eleições estado-unidenses, sido. Ademais, o direito à igual participação política de mulheres e negros, nos EUA reflete disputas violentas, que marcaram com sangue e morte a história daquele país.

Kamala Harris A primeira mulher a ser eleita vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Foto: Ronda Churchill/AFP

Percebe-se como os direitos políticos são intimamente ligados aos direitos culturais, por isso deu-se a imediata relação entre o ativismo pelo direito à educação de qualidade, dessegredada, e a conquista de posição política institucional no segundo mais alto posto do poder executivo da maior potência mundial. A história política e de acesso à educação de mulheres negras estado-unidenses leva a comparativos com a história nacional.

No Brasil, a história referencia as nativas brasileiras como as primeiras a serem alfabetizadas pelos colonizadores, conforme afirma Arilda Ribeiro e narra a assessoria de imprensa do MEC, ao mencionarem que Catarina Paraguaçu, filha de colonizador e casada com colonizador, escrevera carta de próprio punho ao religioso Manoel da Nobrega em 1561.

Apesar da autorização de educação, privada, de mulheres no Brasil remontar à reforma pombalina, de 1750/77, foi somente em 1827 que mulheres passaram a frequentar espaços públicos de educação. Aquelas escolas distinguiam as disciplinas por gênero, uma vez que apenas os homens podiam atender as disciplinas adjetivadas como mais racionais e não podiam atender as disciplinas do lar. Apesar de tais espaços de formação das filhas das elites, é sabido que a primeira escola normal do país, escola de ensino médio habilitadora de professores de educação básica, não admitia mulheres como discentes em 1835, ou seja, apenas homens eram formados no Brasil para serem professores de educação básica naquele período.

Quanto aos negros, no Brasil, tradicionalmente referencia-se à lei número um de 14 de janeiro de 1837 como primeiro indicativo de obstáculo de acesso à educação formal pública, desta parcela da população, como política de Estado. O texto da mencionada norma enunciava:

“São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.

O acesso ao ensino público, em todos os níveis, ocorreu um pouco mais tarde para os negros no Brasil, haja vista que se em 1835, enquanto mulheres frequentavam educação básica e ensino médio, direcionado para os valores morais sexistas de então, contudo acessavam o ensino formal público, aos negros, livres ou libertos, tais espaços educacionais formais públicos ainda lhes eram proibidos.

Seria, em razão da correlação existente entre educação e participação política democrática, por meio do voto, possível, indutivamente, assumir que aos negros o voto fora igualmente negado por mais tempo na história do país. Não parece ter sido, contudo, legislativamente, o ocorrido.

Alguns afirmam genericamente que, até 1934, mulheres negros pobres e analfabetos não tinham direito ao voto, contudo, possível identificar normas que permitiam voto aos descendentes de africanos, negros, antes do mencionado ano.

No período do Império, os libertos podiam votar como eleitores de primeiro grau. A Constituição de 1824 restringia o direito de voto dos libertos, nada mencionando em relação aos ingênuos, o que permite a interpretação como possibilidade de voto dos negros ingênuos em eleições de segundo grau, já naquele período.

Com a abolição do sistema escravista no Brasil, em 1888, sete anos após a promulgação da Lei Saraiva, que abolira o voto do analfabeto, os negros passaram a formalmente poderem votar, o que na prática pouco ocorreu uma vez que a maioria era analfabeta e encontrava-se liberta e alijada do exercício do direito de voto em razão da lei de 1881.

Formalmente, com a abolição do escravismo os negros conquistaram seu direito ao voto, contudo o exercício de tal direito ficou condicionado à plenitude do acesso à educação, direito que ainda lhes era negado.

De forma um pouco distinta, a conquista do direito ao voto feminino na história do Brasil referencia-se à professora Celina Guimarães Viana, apontada como a primeira eleitora do país, cuja inclusão no rol de eleitores deu-se em Mossoró, Rio Grande do Norte, em novembro de 1927.  Tal inclusão fundamentou-se no artigo 17 da lei eleitoral incidente nas cidades de Mossoró, Açari e Apodi (cidades pioneiras do país a reconhecer o voto feminino). A primeira prefeita eleita no Brasil, Alzira Soriano, chefiou o executivo de Lages, também Rio Grande do Norte.

Parece-nos, analisando as pioneiras e pioneiros nacionais, que, no que concerne ao direito de frequência a escolas, as mulheres tiveram o direito reconhecido pelo Estado um pouco antes do que os negros do país. No que concerne ao exercício do direito de voto, em razão das previsões que não proibiam os ingênuos do exercício de tal direito, contemporâneas às leis que proibiam as mulheres do exercício de voto, normas sexistas que permaneceram em vigor após a abolição do escravismo, podemos indutivamente concluir a precedência do exercício desse direito por negros, em relação ao exercício do direito pelas mulheres.

Em face desses momentos históricos recentemente ocorridos, eleição de Kamala Harris e implementação de cotas de raça e paridade de gênero na OAB brasileira, percebe-se importante observar sobre a interseccionalidade na história escrita dos e das pioneiras.

Uma das premissas teóricas metodológicas da Escola de Teoria Crítica Racial, escola de onde a categoria interseccionalidade surge, trata da invisibilidade, silenciamentos e ausências, como fonte de informação sobre dinâmicas recorrentes. O que nos leva a retomar a pergunta: e as mulheres negras? Quando elas conquistaram seus direitos a frequentar escolas e votar e serem votadas na história do Brasil? Junto a quais grupos conseguimos vislumbrar as pioneiras negras?

Continua e permanece essa mesma pergunta, que não seja por muito tempo.

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