Opinião

Mino Carta: Socialistas, onde?

Sosseguem, leões: salvo raras exceções, o esquerdista brasileiro não concebe o Brasil sem a Globo

Esta bola passou muito acima do travessão (Evaristo Sa/AFP) bolsoaro posse
Apoie Siga-nos no

Permita-me o senhor presidente da República, Jair Bolsonaro, manifestar minha discordância em relação a certa e significativa passagem do seu discurso de posse. Ao contrário do que o senhor afirmou, o Brasil não é e nunca foi socialista. A sua eleição nos brinda com uma das provas irrefutáveis do que acabo de dizer. As demais estão nos arquivos da mídia nativa e nos livros de história.

Talvez tenha ocorrido uma ou outra tênue tentativa de vaga tendência socializante, sempre e rapidamente frustrada. Quando o PT nasceu, exibia uma plataforma ideológica de esquerda e um dos seus qualificados inspiradores, o professor Francisco Weffort, chamado amiúde a comandar as reuniões partidárias, encerrou seus dias de política como ministro de Fernando Henrique Cardoso. É uma história simbólica da efêmera trajetória de uma falsa vocação esquerdista.

Espero que o presidente Bolsonaro perdoe as minhas observações, confesso, porém, minha surpresa, à falta do entendimento presidencial a propósito da precariedade e mediocridade da chamada esquerda brasileira, quando não da insinceridade. Creio mesmo, e já escrevi sobre o assunto, de que se trate de pura obra de ficção. Há, isto sim, alguns dignos cidadãos emprenhados com total sinceridade e muita coragem em lutar pela igualdade, figuras raras, contudo.

Sou um ancião jornalista de 85 anos completos, italiano nato e brasileiro por escolha, voltado prioritariamente a entender por que um país tão favorecido pela natureza não é o paraíso terrestre vaticinado por outro italiano, Americo Vespucci, em 1501. Nunca me filiei a partido algum, mas acredito nas lições do Iluminismo e nos princípios da Revolução Francesa e neste momento enxergo em papa Francisco o mais importante estadista, quem sabe o único, do nosso tempo atribulado. Na minha visão, fascismo, nazismo e comunismo soviético são frutos da mesma árvore.

Ao mesmo tempo percebo que social-democratas como Olaf Palme, Willy Brandt e Helmuth Schmidt, Aldo Moro e Enrico Berlinguer foram decisivos para o progresso dos seus países, assim como se deu com grandes conservadores, de De Gaulle a Adenauer, de Maurice Schumann a De Gasperi, que jamais se afastaram de eficazes políticas sociais para erguer o Estado de Bem-Estar Social.

Não faltou contribuição de um plano formulado e coordenado pelo general Marshall, possivelmente do apreço dos fardados que integram o governo Bolsonaro, destinado a fortalecer a Europa Ocidental na qualidade de anteparo à pressão vinda de além Cortina de Ferro, conforme o vocabulário da época.

Leia também: Em nova posse, Maduro chama Bolsonaro de 'fascista'

Social-democrata fora, de resto, Franklin Delano Roosevelt, que enfrentou a crise precipitada pelo crack da Bolsa de Nova York ao sabor das ideias de Lord Keynes. Tivesse vingado no Brasil um passado social-democrático autêntico, sem qualquer parentesco com o PSDB, o País não figuraria hoje entre os dez mais desiguais do mundo, em companhia de Suazilândia, Tanzânia e Serra Leoa, com sua indústria destroçada e reduzido a mero exportador de commodities. E sem a mais pálida imitação de um Estado de Bem-Estar Social.

O problema central, determinante, avassalador, é o monstruoso desequilíbrio social que a nossa esquerda de fancaria deixou fermentar irresponsavelmente. Tudo quanto obsta o esforço de reequilibrar a distribuição da renda, aprofunda o abismo. Trafego pelas ruas de São Paulo, é dia de trabalho, mas parece feriado.

Nada expõe tão claramente a situação do país dos ricos: assumiram o volante e foram para a praia, com mulher e filhos.

Com todo respeito, quem dera que o Brasil tivesse sido social-democrata. A despeito das boas intenções de alguns presidentes, Getúlio, Goulart e Lula, somos ainda o país da casa-grande e da senzala, límpida demonstração do fracasso do esquerdismo à brasileira, incapaz de levar o povo à consciência da cidadania. Tal é a verdade dos fatos, a nossa normalidade.

Do colega de redação Fred Paiva Melo recebo o seguinte recado: “No dia da cerimônia de posse da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, fez sucesso um vídeo amador em que a empossada celebra a inauguração de uma ‘nova era’ no Brasil, em que ‘menino veste azul e menina veste rosa’, referência clara à ‘ideologia de gênero’, um dos moinhos (atenção, Fred refere-se aos delírios quixotescos) preferenciais contra os quais se bate o novo governo. Na parte do vídeo em que profere as novas regras de vestimenta, Damares está sorrindo fartamente e dando pulos. Em seguida, é ovacionada pelo público e tira selfies com o pessoal”.

Leia também: Deputados democratas dos EUA criticam aproximação com Bolsonaro

Confesso invejar a ministra Damares que teve a ventura de encontrar Jesus em um pé de goiaba, justo prêmio, ocorre-me pensar, para uma cristã integral, de acordo com suas próprias declarações. Ela sabe, ouso imaginar, que Cristo morreu na cruz por pregar a igualdade entre os homens, defender os desvalidos e perdoar os pecadores. Cuidado, ministra, não seria ele vermelho?

Quanto à cor rosa, recordo já ter sido suspeita. Antonio Carlos Magalhães proclamava aos quatro ventos: “Fernando Henrique Cardoso nunca foi vermelho, não passou de um cor-de-rosa”. Eu mesmo, ao entrevistar o príncipe dos sociólogos eleito à Presidência da República, lembrei da visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil, no começo da década de 60 do século passado, e FHC foi um dos seus acompanhantes embevecidos.

Observei: “Então você era cor-de-rosa”. Atalhou: “Não, então já misturava Marx com Weber”. Retruquei: “No prefácio do seu livro Escravidão e Pobreza no Brasil Meridional você declara ter usado o método dialético marxista”. E ele: “Sim, foi bom você me lembrar, foi no prefácio da primeira edição, na segunda tirei a referência”.

Logo mais, em abril, 15 anos terão se passado desde a morte de Raymundo Faoro, autor do monumental Os Donos do Poder, indispensável ao conhecimento do País, amigo fraterno e mestre insubstituível. Pergunto aos meus fatigados botões que diria Raymundo diante do Brasil de hoje.

Talvez registrasse imerso na luz azulada do Rio Minho, o restaurante português à beira do cais carioca no fim da Rua do Ouvidor, o último capítulo da obra-prima de Dom João VI. Do amigo me vêm à memória duas frases de extrema sabedoria. “Não se esbalde em ironias, vão entender que você fala sério.” E a outra: “Com a direita que temos, por que esquerda você esperava?”

“Bem – comentei –, a brasileira não concebe um Brasil sem a Globo.”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo