Opinião

Mino Carta: O senhor do golpe

Um medíocre provinciano conseguiu chegar lá

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A escolha do culpado precede a definição da culpa, dizia uma personagem do conto que publiquei na edição de fim de ano, intitulado “O Processo”, inspirado, obviamente, em Franz Kafka e magistralmente ilustrado por Hélio de Almeida. Ou, por outra, o culpado atrai a culpa. Valeria um retoque para arredondar o conto, de sorte a acrescentar mais uma personagem, a juíza Gaby, que em Malastrana substituiu o juiz Morus. Nada a ver com Thomas More, o pensador e jurista inglês que desafiou Henrique VIII e escreveu Utopia.

Fiel ao roteiro da Inquisição do Santo Ofício, a juíza federal Gabriela Hardt condenou Luiz Inácio Lula da Silva a 12 anos e 11 meses de prisão pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do célebre sítio em Atibaia com vista para a favela. O ex-presidente foi acusado de receber 1,2 milhão de reais em propinas referentes às reformas do imóvel, que de fato pertence ao empresário Fernando Bittar, cuja família mantém laços de amizade com a de Lula há décadas. Segundo a Lava Jato, o sítio passou por três reformas: uma sob o comando do pecuarista José Carlos Bumlai, no valor de 150 mil reais, outra tocada pela Odebrecht, de 700 mil, e uma terceira na cozinha pela OAS, no valor de 170 mil. Tudo baseado em delações premiadas, que aos delatores garantiram largos benefícios.

O advogado do ex-presidente, Cristiano Zanin, ao anunciar o recurso, de forma irretorquível prova o atentado “aos mais basilares parâmetros jurídicos” e acentua “o uso perverso das leis” com o claro objetivo da perseguição política. Mas, como em Malastrana, no Brasil reina a lei do mais forte e o culpado é escolhido antes de inventar a sua culpa.

O desfecho do processo já estava escrito. Com apenas nove anos de experiência na magistratura, Hardt herdou o caso de Moro após o inquisidor-mor, contraventor das regras mais elementares de um processo conduzido sob a égide do Estado de Direito, aceitar o convite para ser ministro da Justiça de Bolsonaro. Recompensa ao cabo eleitoral que interferiu na disputa ao abrir às vésperas do pleito presidencial o sigilo de trechos da delação de Antonio Palocci a repisarem acusações sem prova contra Lula e o PT.

O prêmio cabe, porém e sobretudo, à figura decisiva do golpe urdido contra um país incapaz de perceber o monstruoso alcance da farsa trágica. No coração da trama está a Lava Jato, impulsionada, desde o momento em que já se desenhava o impeachment de Dilma Roussef em concomitância com as eleições de 2014, por Sérgio Moro, provinciano e medíocre, e tão representativo da situação dos dias de hoje. Conformem-se os espíritos atilados e altivos, o senhor do golpe, o deus ex machina, é este juizeco que se arvora a jurista, revisor desvairado de códigos elaborados por uma sabedoria perdida.

A senhora Hardt é moça e arrogante, como se espera nestes tempos bicudos. Gosta de aparecer e mostrar serviço. Ainda em maio de 2018, ao cobrir férias de Moro, determinou a prisão do ex-ministro José Dirceu. Dois meses após assumir interinamente os casos da Lava Jato, condenou dez réus. Ao colher o depoimento de Lula, em novembro do ano passado, chegou a bater boca com o ex-presidente, encerrando a discussão com uma ameaça: “Se o senhor começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”.

Oriunda de um clã político da pequena cidade de Indaial, no Vale do Itajaí, a juíza irritou-se quando Lula perguntou sobre o que exatamente era acusado. “Sou dono do sítio ou não?”, indagou. “Isso é o senhor que tem que responder”, rebateu Hardt, a adverti-lo que o indagado era ele. O ex-presidente emendou: “Não, quem tem que responder é quem me acusou”. Em vez da resposta, recebeu a reprimenda irada. Pelo jeito, a moça tem os nervos à flor da pele e a truculência bolsonarista.

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A sentença curitibana é mais um capítulo do enredo golpista que se inicia com a reeleição apertada de Dilma Rousseff em 2014. Recordo ter jantado com Lula em uma noite de abril de 2015, em companhia de Luiz Gonzaga Belluzzo e minha filha Manuela. Foi fácil apontar os novos passos que os golpistas se prontificaram a dar sem maiores hesitações, a caminho do impeachment. Viriam em seguida o processo e a inevitável condenação de quem seria eleito no primeiro turno do pleito já programado para 2018. Recomendei: bota a boca no trombone, organize caravanas Brasil afora.

Nada discrepou do roteiro que traçara, mas as caravanas saíram somente quando Lula já estava condenado pelo infatigável inquisidor que agora temos de padecer como ministro da Justiça. Justiça? Antes de se entregar, Lula havia dito algo assim: se me deixam solto, volto à Presidência, se me prenderem viro mártir. Não percebeu que se tratava de profecia de longo prazo. Abandonado por muitos companheiros, esquecido, quando não execrado por levas de eleitores de outras jornadas, ele só será reconhecido como mártir em um futuro não sei quão distante.

Não esqueçamos, em todo caso, haver fora do Brasil quem se preocupe com o destino de um presidente que deixou rastros profundos. Não é por acaso que, apresentado como candidato ao Prêmio Nobel da Paz, um abaixo-assinado já colhe perto de 1 milhão de assinaturas. A decisão da juíza Gaby, perdão, Gabriela Hardt (e que não se perca pelo sobrenome) vai repercutir negativamente mundo afora.

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