Opinião

Mino Carta: O jantar dos ricos

Miúdas considerações a respeito de uma burguesia de caricatura

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Peço licença para abordar um assunto trivial, muito aquém de secundário, haverá quem diga. Fui jantar, noites atrás, em restaurante fino, felizmente o anfitrião, ele e a mulher amigos fraternos, pagou a conta. Garçons de roupas variegadas, frequentadores, a lotarem o local, da chamada classe média brasileira que de média não tem coisa alguma. Cavalheiros de camiseta e jeans, estilo PCC, damas empetecadas à desmesura, reluzentes de ouros e pedrarias. Fiapos de conversas, ao atingirem meus ouvidos, denunciavam o vácuo de Torricelli a habitar suas cabeças.

Um dos pratos importantes trazia frutos do mar excitados por uma nevasca de bottarga ralada. Trata-se de um típico produto da Sardenha, onde nasceram, entre outros, Antonio Gramsci, Enrico Berlinguer e meu avô paterno. Era ele da região de Oristano, onde se produz a melhor bottarga de toda a ilha e onde costumo visitar primos muito queridos. Por isso tornei-me perito em matéria de tainha mediterrânea, forçada a pastar nas lagunas comuns do mar sardo, e as de Oristano são as mais ricas em pastagens subaquáticas. Os ovários das fêmeas são retirados na hora certa, colocados debaixo de um peso depois de salgados. As ovas endurecem envoltas por uma pele finíssima, formam duas sacolas achatadas unidas no alto, e esta é a iguaria, que tanto pode ser fatiada quanto ralada.

Para alegria dos nossos abastados a par de novidades gastronômicas mal digeridas, surge quem afirme que produz bottarga nativa, o que talvez seja possível em algum recanto do Mediterrâneo ou do Mar Negro capaz de repetir as condições da Sardenha, por aqui jamais. Consta que o chef Alex Atala, colocado entre os melhores do mundo por uma revista da Nestlé que anualmente se atribui competência para elaborar a classificação, cria tainhas no quintal, não sei em qual contêiner. Uma piscina? Certo é que existe uma fábrica de bottarga catarinense. Mastiga deleitada a minoria verde-amarela, a qual, sublinho, ainda não entendeu que em Paris, Roma, Lisboa, Londres e outras cidades e vilas europeias será inútil pedir um copo de vinho chamando-o de taça.

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Primeiro: a tainha do Mediterrâneo não é a do Atlântico, a começar pelo plâncton, que, obviamente, não é o mesmo. Além disso, Santa Catarina ou o quintal de Atala não se parecem com as costas sardas. Mas no restaurante fino o garçom trajado a caráter aproxima-se na ponta dos pés a imitar o banderillero, munido de um ralador e de uma espécie de grosso e sinistramente violetado objeto misterioso de formato cilíndrico, e diz ser bottarga, dulcis in fundo do prato sobre o qual se reclina como se estivesse a fatiar trufas brancas de Alba. Prepara-se a servir meu anfitrião, e eu não me contenho: “Não, este troço não”. Em nada se assemelha à bottarga, cor de âmbar brilhante e feições inconfundíveis.

Cheguei à conclusão de que esta parva categoria social que não justifica o nome de burguesia seria capaz de comer, perdão, degustar a receita seguinte: cocô de galgo, ou de outra raça nobre, conforme ela própria definiria, sobre torradas ao forno de lenha, previamente cobertas por uma camada de manteiga normanda de Coutances, a inebriar o menino Marcel Proust só pelo nome. Uma tropa incapaz de perceber o grau atingido de ridículo exorbitante é altamente representativa daquele 1% da população que tem renda mensal de 27 mil reais por mês, e daí para cima.

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Tanta parvoíce tem suas raízes antigas. No fundo, a implacável gravura de Debret que retrata o almoço na casa-grande é um excelente introito aos dias a seguir tempo adentro. Houve, porém, momentos mais dignos. Lévi-Strauss, ao fugir da perseguição racial nazista, veio ao Brasil antes da Segunda Guerra Mundial e sobre a sua passagem pelo País escreveu Tristes Trópicos, um livro que, certamente, os frequentadores do restaurante fino não leram. A respeito dos quatrocentões paulistas que lhe deram guarida escreveu: “Eles se acham refinados e não sabem como são típicos”. Ainda assim, acabavam de fundar uma universidade onde lecionariam, além de Lévi-Strauss, figuras do porte de Braudel, Ungaretti, Fantapié, Albanese.

Perdoem se em vez de um editorial escrevi uma crônica. Nestes tempos dolorosa e gravemente doentes, preferi escapar dos temas habituais, eu mesmo enfadado pela constatação inevitável da desgraça. 

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