Opinião

Milton Rondó: Do mau

Estamos mais próximos dos nossos ancestrais de 2,6 milhões de anos atrás do que de nossos avós de 100 mil anos

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O mau em política externa tem muitas formas – “somos legião”, dissera o mau ao Cristo. Porém, o mau não é sustentável – no tempo e no espaço. “Mentira tem perna curta”, dizemos.

Com efeito, o mal que sofremos atualmente não consegue se impor nem ao Norte nem ao Sul do continente (sequer atinge plenamente o Nordeste do Brasil).

O mesmo ocorre nos EUA, ao qual estamos subordinados nesta quadratura da história. Foram os mexicanos e mexicanas que elegeram o presidente Andrés Manuel López Obrador, no México, mas Trump deu uma mãozinha, ao tentar humilhar aquela nação com a planejada construção do muro entre os dois países (coerente e pateticamente elogiado pelos maus locais).

Ao sul, Cristina Kirchner acaba de superar Macri nas intenções de votos. A mãozinha, no caso, foi dada pelo mau local, que tem ridículas pretensões de imperialista júnior…

Por outro lado e em toda parte, vemos a desconfiança com relação aos políticos aumentar, em países desenvolvidos ou em nações em desenvolvimento.

Os sintomas dessa desconfiança na democracia ficam claros: a ascensão – novamente – das extremas-direitas, não apenas na Europa, mas também em países como as Filipinas e o Brasil. Na Espanha, acabam de ingressar no Parlamento.

Em seu livro mais recente, “Reflexões de um velho”, Leonardo Boff nos recorda: “Há 2,6 milhões de anos surgiu o homo habilis, que já manejava instrumentos (pedras polidas e paus) como forma de intervenção na natureza. Há 1,5 milhão de anos já andava sobre as duas pernas: o homo erectus, capaz de elaboração mental… Nessa sequência, há 200 mil anos irrompeu o homo sapiens já plenamente humano, vivendo socialmente, usando a linguagem e organizando a subsistência de forma cooperativa. Há 100 mil anos, finalmente, surgiu o homo sapiens sapiens moderno, cujo cérebro apresenta tanta complexidade que o faz ser portador de autopercepção consciente e de inteligência.”

Entretanto, somos ainda tão primários no que tange à participação política. Talvez daí advenha a desconfiança que os representantes políticos despertam atualmente.

De fato, se examinarmos os instrumentos desenvolvidos para a participação cidadã, verificaremos que são incompatíveis com os desenvolvimentos culturais, educacionais, científicos, técnicos e tecnológicos, atingidos pelas sociedades contemporâneas.

Na imensa maioria dos países, a participação se resume ao exercício do voto, em intervalos de alguns anos. No entanto, as comunidades mudam em ritmo acelerado, em razão das citadas conquistas culturais, educacionais, científicas, técnicas e tecnológicas. Em termos de instrumentos políticos, estamos mais próximos dos nossos ancestrais de 2,6 milhões de anos atrás do que de nossos avós de 100 mil anos.

Em política interna, ainda prevalecem – em grande número de países – a manipulação e o medo, quando não o terror.

 

Nas relações internacionais, promovem-se igualmente manipulações, golpes de estado e guerras. Sobre estas – que representam o fracasso da diplomacia, da convivência e da resolução pacífica dos conflitos – é simbólico que o orçamento militar dos EUA para 2020 seja de 718 bilhões de dólares, maior do que a somatória dos orçamentos dos 12 países que vêm a seguir. A China deverá ter orçamento de 224 bilhões e a Rússia, de 44 bilhões.

No front interno, o domínio do individualismo, da descrença na vida coletiva e na democracia permitiu a eleição de partidos de extrema-direita em muitos países, principalmente naqueles em que se verificou acúmulo negativo de domínio cultural, hegemônico, por parte da mídia e uma valorização, pela sociedade, das forças de repressão. Estas, foram favorecidas pela crescente violência, resultado – em parte – das extremas concentrações de renda. Não por acaso, a sequência de golpes de estado, no continente, ocorreu em países que reuniam essas características: Haiti, Honduras, Paraguai e Brasil.

Como mudar? A boa receita só pode ser o contrário da má: desconcentração dos meios de informação – mas também de expressão; debate sobre manifestações culturais – inclusive relacionamentos interpessoais; construção conjunta de formas de participação política ampla, inclusiva e prazeirosa.

Um exemplo? O “Ai que saudades do meu ex”, bloco recém-criado em Porto Alegre. São petistas e psolistas, batucando – pela libertação de Lula, mas também para se encontrarem, tomarem a fresca da noite e descansarem dos aplicativos por algumas horas.

A iniciativa complementa a necessária construção de conselhos e de outros mecanismos de participação popular, refina e sofistica – permitam o neologismo – a participação política tradicional, verbal, insubstituível.

O importante é falarmos de política – tudo o que a Rede Globo, a Record e as demais seis famílias não querem. Discutirmos política, religião e futebol representará uma bela quebra de paradigmas para os brasileiros e brasileiras.

As trevas só se afastam com a luz; a solidão, com a companhia – ainda que de nós mesmos; o erro, com a verdade, rica, simples e libertadora.

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