Opinião

Lula está de volta ao jogo e isso muda tudo

Ele não é um homem do passado, é um homem com passado. E só os homens que têm um passado saberão como construir um futuro, escreve Sócrates

Foto: Ricardo Stuckert
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O Brasil não é para amadores. Nem para cardíacos. Devo confessar que muito me atrai este gosto pelo imprevisto e pela reviravolta inesperada que caracteriza a vida política brasileira. Para o bem e muitas vezes para o mal. Mas uma coisa é certa, aí ninguém se pode queixar de tédio. De um dia para o outro mudou todo o quadro político e o ponto crítico é o que diz respeito a Lula da Silva – está de regresso ao jogo. E isso muda tudo. Oh, se muda. Aqui vai a minha primeira reflexão. O Brasil ganhou duas coisas: a primeira foi acabar com um certo mal estar nacional, a segunda foi ganhar um novo protagonista.

Comecemos pela primeira. Julgo ser inegável afirmar que, neste último ano, o povo brasileiro foi progressivamente tomando consciência da monstruosa injustiça judicial cometida contra o antigo presidente. Não podia continuar. O sentimento dominante no Pais – sentimento que não é exclusivo dos apoiantes do antigo presidente – é o de que, finalmente, se pode respirar de alivio. A justiça abre caminho à reconciliação. Há, naturalmente, quem não tenha percebido que o acontecimento vai muito para além das fronteiras partidárias. Há também quem não disfarce o azedume e continue a falar de “figurinha repetida ”, não percebendo que o que acabou foi justamente a ideia dessa “nova política” em que tudo se resumiria a uns cursinhos de formação, uma boa carinha e uma boa agência de comunicação. Este ciclo de governação do presidente Bolsonaro será tão traumático que a política brasileira não desejará mais pagar o preço da inexperiência e do aventureirismo. Salvo melhor opinião, a decisão abriu um novo ciclo.

Antes de passar à frente e de ir para o segundo ponto é preciso também fazer a justiça de reconhecer que o que aconteceu ontem representou uma extraordinária vitória judicial. Cinco anos de insistência, cinco anos de batalha, cinco anos de vontade e sentido do dever. Cinco anos sem esmorecer. Ao fim de todos esses anos podemos dizer que Cristiano Zanin e Waleska Zanin fazem agora parte desse pequeno grupo de pessoas que percebe que só amamos as vitórias que os demais consideraram impossíveis. Eles, e os juristas que desde a primeira hora os acompanharam, entre os quais, é meu particular gosto destacar, o meu bom amigo Rafael Valim. Na verdade, só estas vitórias contam. Só elas ficam.

Acresce ainda que a questão em jogo é de capital importância. Não se trata de uma formalidade, de uma minudência, de uma bagatela, de um qualquer assunto de secretaria. Não. Trata-se da questão do juiz natural, um princípio constitucional universalmente consagrado. O juiz do caso deve ser aquele que está previamente determinado na lei e não um juiz escolhido ad hoc, isto é, escolhido para aquele caso em especial. Todo o escândalo de Curitiba se baseou nessa manipulação inicial, na escolha da jurisdição. O que se passou, para ser mais direto, é que o Ministério Público, uma das partes, escolheu o juiz, o seu juiz. O jogo sempre teve as cartas marcadas. Bem sei que a escolha arbitrária do juiz é um dos clássicos dos casos de lawfare e, também por isso, é tão importante que a manipulação tenha sido desmascarada e vencida. Só as ditaduras escolhem juízes, as democracias não o fazem.

Vejo também para aí espalhada a ideia de que se tratou de uma ação de desespero para salvar o antigo juiz Sérgio Moro do incidente de suspeição que estaria agendado para decisão do Supremo. Talvez. Mas gostaria de lembrar que não é próprio da política disparar sobre uma ambulância. O antigo juiz está, há muito, em coma político, vítima, aliás, de si próprio. Como juiz foi indigno, como político, medíocre.

Finalmente, olhemos para o futuro. O Brasil tem agora a oportunidade de se reconciliar consigo próprio. Tem agora a oportunidade de fazer regressar a política ao terreno da disputa leal e do respeito pelos adversários. A tarefa é imensa. Vai ser preciso um novo pacto. Vai ser preciso espírito de compromisso. Vai ser preciso reconstruir as pontes que a violência, a brutalidade e o crime destruíram e que ameaçou a própria existência democrática. Esse trabalho histórico precisa de um personagem. Alguém cuja biografia e história pessoal lhe permitam elevar-se acima do trauma e do ressentimento, estendendo a mão para um novo começo. Um novo tempo começou. Era certamente neste momento que pensavam todos aqueles que, em Curitiba, durante 580 dias, gritaram bom dia presidente, boa noite presidente. Bom dia para vocês também, que este é já um novo dia. Lula da Silva está de volta. E, para quem ainda não compreendeu a diferença, ele não é um homem do passado, é um homem com passado. E só os homens que têm um passado saberão como, de novo, construir um futuro.

Publicado na edição nº 1148 de CartaCapital, em 11 de março de 2021.

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