Opinião

Lentamente, o bem vence o mal e vamos reassumindo nossa tão golpeada cultura

Às vésperas do 7 de Setembro, que belas lições temos a aprender…

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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“Nada pode fazer a nossa vida, ou as vidas de outras pessoas, mais bela do que a bondade perpétua.”
Leon Tolstoi

O bem vence o mal, devagar.

Pesquisa recente demonstra que a população brasileira confia mais em professores e cientistas do que em militares.
A vida se sobrepõe à morte.

Lentamente, também vamos reassumindo nossa cultura, tão golpeada por pessoas vazias, como o presidente ilegítimo, sua terceira primeira-dama e os demais membros da familícia, a ponto de não se entender nada do que o júnior tenta, em vão, comunicar.

Com efeito, não pode haver mudança sem que um povo esteja consciente de quem seja. Aliás, isso também se aplica para as pessoas, em âmbito individual.

Nesse sentido, o caso mais clássico talvez seja o da Revolução Russa de 1917. Sem Púchkin, Dostoievski e Tolstoi, que tanto ajudaram o povo russo a se inculturar, na própria cultura, a revolução certamente teria sido retardada.

No Brasil, com uma vida cultural tão rica, a mudança está preparada e deve-se consumar em 2 de outubro, um dos dias mais felizes de nossas vidas. Os endemoniados – não os de Dostoievski, os da milícia – deixarão o Alvorada e o Planalto.

Um belo exemplo de inculturação nos dá Eduardo Galeano em As caras e as máscaras, o segundo volume de Memória do Fogo: “1714 – O Médico das Minas – Esse médico não crê em drogas nem nos caríssimos pozinhos vindos de Portugal. Desconfia das sangrias e dos purgantes e faz pouco caso do patriarca Galeno e de suas tábuas da lei. Luís Gomes Ferreira aconselha a seus pacientes um banho por dia, o que na Europa seria claro sinal de heresia ou loucura, e receita ervas e raízes da região. Muitas vidas o doutor Ferreira salvou, graças ao bom senso e à antiga experiência dos índios e a ajuda da moça-branca, aguardente de cana que ressuscita moribundos…Raramente o médico atende a um doente negro. Nas minas brasileiras, o escravo é usado e jogado fora. Em vão, o doutor Ferreira recomenda aos amos um trato mais cuidadoso, pois assim estão pecando contra Deus e contra seus próprios interesses. Nos lavadouros de ouro e nas galerias subterrâneas não há negro que dure 10 anos, mas um punhado de ouro compra um menino novo, que custa tanto quanto um punhado de sal ou um porco inteirinho.”

No Brasil que, em pleno século XXI, pune apenas 1% dos responsáveis por trabalho escravo – como Rodrigo Martins informa em ótima reportagem em CartaCapital – Galeano recorda, naquela mesma obra acima citada: “1771 – Paris – Os Fisiocratas – Mais que um crime, a escravidão é um erro econômico, dizem os fisiocratas. Na última edição das ‘Efemérides do cidadão’, Pierre Dupont de Nemours explica que a escravidão perpetua os métodos arcaicos de cultivo e freia o desenvolvimento das colônias francesas nas Antilhas e em terra firme da América. Apesar da incessante reposição de mão-de-obra gasta, a escravidão implica um desperdício e uma deterioração do capital investido. Dupont de Nemours propõe que sejam reconhecidos como elementos de cálculo as perdas produzidas pela mortalidade precoce dos escravos, os incêndios dos cimarrões e os gastos da constante guerra contra eles, a péssima preparação das colheitas e as ferramentas que se estragam por ignorância ou má vontade. A má vontade e a preguiça, diz, são as armas que o escravo emprega para recuperar uma parte de sua pessoa, roubada pelo amo; e a inépcia responde à absoluta falta de estímulo ao desenvolvimento da inteligência. É a escravidão, e não a natureza, que faz o escravo. Só a mão-de-obra livre será eficazmente produtiva, segundo os filósofos economistas da escola fisiocrática. Eles acreditam que a propriedade é sagrada, mas unicamente em liberdade é possível realizar-se na plenitude a produção do valor.”

Como autêntico médico em processo de diagnosticar nossas mazelas nacionais, Galeano aduz: “1785 – Lisboa – A função colonial. A coroa portuguesa manda liquidar as fábricas têxteis do Brasil, que de agora em diante não poderão produzir nada além de roupa rústica para os escravos. Em nome da rainha, o ministro Melo e Castro envia as instruções correspondentes. Observa o ministro que ‘na maior parte das capitanias do Brasil se têm estabelecido, e vão cada vez mais se propagando, diferentes fábricas e manufaturas, não só de tecidos de várias qualidades, mas até de galões de ouro e prata.’ Essas são, diz, ‘perniciosas transgressões’: se continuarem, ‘a consequência será que todas as utilidades e riquezas dessas importantíssimas colônias ficarão sendo patrimônio dos seus habitantes.’ Sendo o Brasil terra tão fértil e abundante em frutos, ‘ficarão os ditos habitantes totalmente independentes de sua capital dominante: é por isso, indispensavelmente necessário abolir do Estado do Brasil as ditas fábricas e manufaturas.”

Questionando o direito de propriedade como direito civil, contratual, não fundamental, Galeano lembra: “1879 – Port-au-Prince – O desterrado Antonio Maceo chega ao alto de Belle Air, a caminho de São Domingos, quando cinco pistoleiros se lançam contra ele. É noite de lua inteira, mas Maceo escapa do tiroteio e se enfia a galope no terreno cheio de ervas daninhas. O cônsul espanhol no Haiti tinha prometido aos verdugos vinte mil pesos em ouro. Maceo é o mais popular e perigoso dos guerreiros da independência de Cuba. Na guerra, perdeu o pai e quatorze irmãos; e à guerra voltará. No trovão da cavalaria, quando o chiado dos facões arremete contra as bocas dos canhões, Maceo cavalga na frente. Em combate ganhou todas as suas promoções e não é do agrado de alguns chefes brancos que um quase negro seja um major-general. Maceo luta por uma revolução de verdade. ‘Não se trata de substituir os espanhóis’, diz. A independência não é o último objetivo, e sim o primeiro. A partir dela, Cuba terá de mudar, e, enquanto o povo não mandar, a  colônia não será pátria. Os grandes latifundiários ‘criollos’ desconfiam, com toda razão, desse homem que diz não ser absolutamente sagrado o direito de propriedade.”

Às vésperas do 7 de Setembro, que belas lições temos a aprender.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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