Cultura

Há 50 anos a esquerda criticava a cena musical negra dos subúrbios

No ritmo do soul, comunidade legitimava a negritude com forte influência afro-americana

Fonte: Reprodução
Apoie Siga-nos no

No começo dos anos 1970, bailes no subúrbio carioca atraiam até 20 mil frequentadores no ritmo do soul. A esquerda tradicional brasileira não teve simpatia pelo movimento, considerado americanizado e consumista, apesar de usar referências da resistência afro-americana. 

A cena musical soul ganhou algumas capitais no país, mas no Rio de Janeiro se tornou fenômeno. O país vivia sob ditadura militar e na década anterior conviveu com uma efervescência cultural forte e que acabou sendo reprimida pelo regime. Esse sufocamento fez dos anos 1970 ter queda na chamada produção artística engajada.

Luciana Xavier de Oliveira, no livro A Cena Musical da Black Rio – Estilo e Mediações nos Bailes Soul dos Anos 1970, trata bem dessa questão e ganha certa relevância de análise nesse momento em que o movimento negro nos Estados Unidos ganha adesão no Brasil.

A cena musical foi mais do que a entrada do gênero soul music no Brasil. Representou também um estilo próprio de dançar, de se vestir, de se afirmar, como o cabelo black power.

“A Black Rio demonstrava que era possível ser negro de maneiras distintas, todas pautadas por uma sensação de orgulho, de fortalecimento da autoestima. Isso decorria não apenas da própria reorganização de movimentos políticos negros, mas também de um maior acesso – ainda que tímido – à escolarização e a à processos de educação não institucionais, como participação em coletivos políticos, artísticos”, afirma Luciana.

Na época, havia um processo de formação de uma pequena classe média negra, que conseguia aumentar seu poder aquisitivo e acessar outros espaços físicos e simbólicos. “Estou falando de poder comprar um disco, uma calça jeans, ou um carro, que permitia a circulação pela cidade ou de pagar o ingresso de um baile. Tudo isso favorecia o contato entre negros de diferentes pontos da cidade. O consumo foi tão fundamental para essa cena, quanto a própria mudança e evolução do discurso político”. 

Receios da direita

O campo da esquerda, na época da Black Rio, tinha um discurso de viés de valorização da cultura nacional. “O fato em si dessa inspiração afro-americana já era visto por setores da esquerda como um problema, um sintoma imperialista. Mas, quando olhamos as críticas ao movimento Black Rio, a questão da raça sempre era ressaltada. A ideia de que os blacks ‘macaqueavam’ os negros americanos não se dava só no sentido de ressaltar a imitação colonizada, mas também apontava para uma posição de que negros brasileiros não teriam agência sobre suas escolhas culturais, políticas e identitárias”. 

De maneira geral, segundo Luciana, as críticas a essas produções culturais representavam uma espécie de medo a um clima de animosidade racial, que ia ao encontro dos receios da própria direita e da ditadura no país, naquele período. 

Nesse ponto, avalia ela, tanto setores da esquerda quanto da direita pareciam combinar quando adotavam discursos semelhantes relativos a uma espécie de ‘’medo branco’’ do elemento negro, rejeitando também uma possibilidade de articulação negra. “Assim, havia uma espécie de consonância na tentativa de sustentar, via crítica cultural, a ideologia da democracia racial brasileira”.

Os movimentos negros americanos eram inspiração da cena com equipes de som promotoras desses bailes, que incentivavam gestos e atitudes politizadas. Não à toa DJs chegaram a ser perseguidos pelo regime militar por usar referências de luta contra o racismo e afirmação da identidade negra. 

O fato de inserirem música negra americana, lançarem álbuns no Brasil de faixas de artistas estrangeiros e estimular a formação de músicos e grupos brasileiros com forte influência do ritmo americanizado, criou celeuma junto aos puristas – mesmo com as fusões que a cena acabou gerando, com a formação e incentivo de subgêneros musicais como samba soul e o samba-rock.

“Pessoas negras têm direito de ouvirem o que quiserem, de dançar, de consumir o que quiserem. É inegável que os Estados Unidos exerçam influência cultural sobre essa cena musical, mas essa não é uma exclusividade. Na verdade, a música norte-americana ocupou grande fatia do mercado musical brasileiro até meados dos anos 1990, em diversas ondas”, afirma a estudiosa. 

Influência no rap e funk

Outros gêneros musicais, como o próprio BRock dos anos 1980, não foram acusados de subservientes na mesma proporção do movimento Black Rio, avalia ela.

“Para perceber como a ditadura agiu em relação à Black Rio, usei bastante pesquisa fundamental da professora e historiadora Paulina Alberto, que se debruçou sobre documentos antigos do regime (a pesquisa dela também foi utilizada para embasar os relatórios da Comissão Estadual da Verdade do Rio em 2015). Nos arquivos da ditadura, nos relatórios das investigações do Departamento da Ordem Política e Social (Dops) sobre os bailes black, é interessante ver como os investigadores vão, aos poucos, percebendo que o ‘movimento’ não tinha motivações políticas terroristas, como suspeitavam. Alguns dos investigadores eram escolhidos justamente por serem negros, para poderem se infiltrar nos bailes sem chamar a atenção”. 

O fato é que, aos poucos, se percebeu que não havia um mote político nesse movimento.  “Mas a minha tese central é de que essa cena musical era sim política, mas baseada em uma outra forma de política que não estava nem à direita nem à esquerda. Ser negro, se amar, se encontrar, e afirmar um determinado gosto, um estilo e um corpo historicamente negado em um contexto social absolutamente racista, per si, já é um gesto fundamentalmente político”. 

Os bailes do Black Rio foram o embrião dos bailes funks, até hoje em evidência. Também foram impulsionadores do rap, sem dúvida o mais importante movimento musical, com suas letras altamente engajadas, surgido no país pós-ditadura militar. 

“O rap, da mesma forma que o funk, o samba-reggae e derivados mais recentes do samba, como o pagode, entre outros gêneros musicais negros brasileiros possuem a mesma importância em termos políticos, estéticos e culturais (guardados seus devidos contextos de surgimento e desenvolvimento). Interessante pensar que esses gêneros tiveram sua emergência a partir dos bailes de soul que eram realizados nas respectivas cidades. 

A gravadora Zimbabwe, que lançou os Racionais, foi criada a partir de uma equipe profissional de bailes black de São Paulo dos anos 1970. No Rio, a equipe Furacão 2000 também virou gravadora. Foram em pequenas festas de soul, realizadas em casas no bairro da Liberdade, em Salvador, que foram dados os primeiros passos para a criação do Ilê Ayê, primeiro bloco afro do Brasil, relata a escritora. 

“Os setores da esquerda aprenderam a valorizar essas manifestações culturais, mas é um valor ainda bastante calcado em padrões ocidentais, que enfatizam um determinado tipo de estética em detrimento de outras, o que se refere à reprodução de valores eurocêntricos”, afirma. 

Identidade

“O valor político de um gênero musical não reside apenas em letras, mas em sonoridades, na dança, nos discursos verbais e não verbais que essas formas musicais fazem circular, e que permitem que populações subalternizadas construam e dinamizem seus próprios valores e organizem maneiras positivas e criativas de reafirmar suas identidades e ocupar seus lugares no mundo”. 

O livro A Cena Musical da Black Rio – Estilo e Mediações nos Bailes Soul dos Anos 1970, de Luciana Xavier de Oliveira (EDUFBA, 2018), é oriundo de uma tese de doutorado em comunicação social defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), que obteve o Prêmio de Melhor Tese de Doutorado da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação em 2017.

“Essa não foi uma pesquisa historiográfica, mas de comunicação. Meu interesse foi perceber como discursos e performances estavam sendo reconfigurados e postos em circulação, via música popular, compreendendo a construção de outros exercícios identitários para a negritude brasileira naquele momento, cujos efeitos podem ser sentidos até os dias atuais”, conclui. 

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo