Rosane Borges

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Jornalista, pós-doutorada em ciências da comunicação, professora colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda (ECA-USP), integrante do grupo de pesquisa Teorias e práticas feministas (Unicamp/Usp), conselheira de honra do grupo Reinventando a educação. Autora de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).

Opinião

Escravidão na Líbia: não às imagens intoleráveis e à ajuda “humanitária”

Os jovens negros que vivem em cativeiro no país africano exigem de nós muito mais do que a inundação de suas fotos nas timelines

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A escravidão na Líbia ganhou, nas últimas semanas, cobertura ostensiva dos sistemas de comunicação mundo afora, alcançando freneticamente as redes sociais, responsáveis por amplificar ainda mais a divulgação das imagens intoleráveis de jovens negros sendo leiloados a 400 dólares, em média, num mercado de escravos.

Cenas aterradoras de açoitamentos, espancamentos e todo o tipo de violação se deram a ver. Inescapavelmente, nos pomos a compartilhar tais imagens com a intenção de denunciar esta tragédia em escala amplificada.

Ao modo de um grilo falante, insisto: até que ponto esta saturação de imagens permite, efetivamente, uma reorientação do olhar de tal modo que possibilite questionarmos a aceitação, muitas vezes sem resistência, de “que homens podem abdicar de verem o outro como seu semelhante para se permitirem todo tido de abuso e destituição”?

 

Onde está, afinal, a força pedagógica destas imagens para além do que muitos de nós já sabíamos?

Não às imagens intoleráveis

As barbáries do fim do século XIX e que se perpetuaram, transmutando-se, no XX, colocaram em perspectiva a questão.

Como reagir ao incessante crescimento das imagens fotográficas e televisivas que nos atribuíram o papel de espectadores das calamidades que assombravam o mundo?

Susan Sontag, Jacques Rancière, Didi-Huberman e Judith Butler são referências para pensarmos a respeito, sob diferentes prismas.

Questiona Didi-Huberman: “é possível materializar em um lugar a violência inefável que quebrou a confiança no mundo? Podemos realmente transpor em imagens o vórtice terrível que absorve as vítimas? Ou devemos, a fim de respeitar o sofrimento das vítimas, abster-nos de mostrar o âmago do trauma?”

Recorro a algumas respostas que formulei em outro artigo.

A publicidade desenfreada de imagens chocantes acaba caindo numa vala comum, destituídas de sua singularidade, esvaziadas, pela lógica do espetáculo, de seus atributos específicos de onde deveriam emanar a ação política que reclamam.

Além da saturação de imagens, a banalização do horror se dá por uma via ainda mais insidiosa: à exacerbação de corpos açoitados, amarrados, mutilados, torturados, trucidados soma-se o fato de que são corpos incapazes de nos devolver, como diz Rancière, “o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra”.

Não ao apelo da “comunidade internacional”

Leia também: Da escravidão à reforma trabalhista

As imagens abjetas de jovens negros acorrentados nos levaram a outra retórica ineficaz: as pessoas passaram a exigir imediatamente uma atitude das Nações Unidas, das potências mundiais e de outros organismos internacionais.

“Onde está a ONU?”, perguntaram alguns indignados; “As potências mundiais precisam assumir uma postura”, bradaram outros.

Qualificar essas exortações de retórica ineficaz pode parecer um despropósito descomunal, uma vez que devemos, sim, responsabilizar todas estas instituições pelos problemas estruturais dos quais esses jovens são vítimas (racismo anti-negro, estrutural, endêmico e global, políticas imigratórias eugenistas dos países europeus e dos EUA, absoluta falta de respeito da comunidade internacional com os Estados africanos).

Mas, lembremos: a ONU e a comunidade internacional não fizeram nada com a tragédia de Ruanda, em 1994 (para ficarmos em apenas um exemplo). Mais do que isso: a ONU retirou suas tropas, deixando a população a sua própria sorte.

Por que fariam, então, agora? Por que se importariam com corpos que são sistematicamente violados e destituídos com o beneplácito de boa parte do mundo?

Lembremos novamente: A ONU e outros organismos foram notificados oficialmente pelo menos desde abril deste ano do que vem acontecendo na Líbia. E fizeram cara de paisagem. Como continuam fazendo.

Em artigo recente a respeito deste drama, publicado no jornal Le Monde Diplomatique, os pensadores Achilie Mbembe e Felwine Sarr, o primeiro camaronês e o segundo senegalês, afirmam que “o sujeito africano da pele negra, o migrante, tornou-se neste século XXI, conforme indicado por Cesaire, este homem da fome, esse homem-tortura: pode-se, a qualquer momento, tomá-lo; vencê-lo, matá-lo perfeitamente, matá-lo sem prestar contas a ninguém, sem pedir desculpas a ninguém.”

Ainda para estes dois pensadores, a luta pelo restabelecimento da dignidade da população subsaariana não será levada a cabo por nenhuma estrutura estrangeira. Resta aos Estados subsaarianos recuperarem a capacidade de proporcionar a parcelas expressivas da juventude uma vida digna, “trabalharem na construção de democracias substanciais, permitindo a participação de todos na inteligência coletiva e no controle da ação pública”.

A falta de políticas que caminhem neste sentido vem levando estes jovens para o caminho do exílio, que muitas vezes é trágico, concluem dos dois pensadores.

Os jovens negros que vivem no cativeiro na Líbia exigem de nós, portanto, muito mais do que a inundação de suas imagens em nossas linhas do tempo e da conclamação pela ajuda da “comunidade internacional”.

Estão a exigir de cada um de nós uma revolução do olhar, quando nos apoderamos de suas imagens (afinal, quais foram as manifestações públicas que fizemos para além das declarações nas redes sociais?), e estão a reclamar um renascimento africano que pense em uma rota de desenvolvimento capaz de barrar a ingerência do dominante sobre o destino de suas vidas e de seus corpos.

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