João Feres Jr.

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Professor de Ciência Política do IESP-UERJ, o antigo Iuperj. Coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública (LEMEP), que abriga o site Manchetômetro (www.manchetometro.com.br) e o boletim semanal Congresso em Notas (congressoemnotas.tumblr.com).

Opinião

Atuação do STF foi crucial para retirada dos direitos do cidadão Lula

Não há instituições que funcionem sem seres humanos minimamente capazes de ocupá-las dignamente

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A revelação por parte do The Intercept Brasil das gravações de questionável legalidade das conversas de Lula com políticos, que se deram em datas próximas à conversa telefônica entre ele e a ex-presidente Dilma Rousseff, vazada pelo então juiz Sergio Moro à Rede Globo, confirma de maneira escancarada algo que já deveria ser claro, pelo menos para aqueles que compreendem minimamente como deveria funcionar um sistema democrático constitucional.

A diferença entre moral e direito é fundamental para o entendimento correto da dinâmica e estrutura desse sistema. Infelizmente, alguns advogados e juristas brasileiros, muito influenciados pelo positivismo jurídico, frequentemente confundem essas duas esferas reduzindo a moral à lei positiva. Para eles, o que não está nas leis não está no mundo. Ora, basta nos libertarmos desse formalismo idealista para notarmos que a moral é uma instância anterior à lei e é só por meio dela que a lei se justifica e também é modificada. No processo democrático, só criamos novas leis ou alteramos as existentes por meio de uma discussão acerca do “dever ser’, isto é, do debate moral. Ademais, as leis existentes para serem legítimas devem se assentar sobre um consenso moral.

Há uma gradação na intensidade desses consensos que sustentam as leis. As mais básicas, os princípios constitucionais, são as mais difíceis de ser mudadas, pois sua alteração abalaria a estrutura mesmo do sistema democrático constitucional. Os direitos básicos são um bom exemplo. A abolição ou mesmo mitigação forte de qualquer desses direitos teria um efeito deletério sobre todo o sistema.

No sistema democrático liberal, esses direitos básicos não são todos iguais. Um deles é de longe o mais importante: o direito político. Ele é a base do elemento democrático desse sistema, mas também o é para a proteção dos direitos liberais clássicos (propriedade, ir e vir, de credo etc.), pois, em última instância, é somente por meio da participação política democrática que tais direitos são protegidos do abuso autoritário.

Ora, o cancelamento da posse de Lula como ministro-chefe da Casa Civil cassou ao mesmo tempo os direitos políticos do ex-presidente, de exercer seu direito político de se tornar ministro, e os direitos políticos de Dilma Rousseff, de nomear quem lhe aprouver para o cargo. Na época, o argumento utilizado pelo juiz Sergio Moro, que se trataria de uma jogada para Lula se evadir do processo judicial, em que ele não estava nem indiciado e nem era réu naquele momento, era absurdo. Primeiro, porque o ex-presidente ao se tornar ministro não estaria se evadindo do Poder Judiciário, mas somente trocando de jurisdição, da justiça federal do Paraná para o Supremo Tribunal Federal. E segundo, porque, uma vez que não tinha sido julgado, não haveria qualquer razão para lhe subtrair qualquer direito. Mas o que ocorreu foi o contrário, lhe roubaram o direito mais básico.

O maior escândalo não está no fato de Moro ter vazado a conversa daquela maneira, sob justificativa tão pífia, já que as ações do então juiz há muito já denotavam que estava utilizando a toga para a ação política com viés partidário. O escândalo mesmo foi a ausência de reação das instâncias jurídicas de controle, mormente o Supremo Tribunal Federal, que deveria ter pelo menos garantido os direitos políticos da presidente Dilma e também do cidadão Lula. Mas não, o que vimos foi o contrário: a decisão de Gilmar Mendes foi impedir que Lula exercesse seu direito político básico e, assim, buscasse uma alternativa política para a crise que nos persegue até hoje, além do silêncio cúmplice dos outros 10 ministros.

Para evitar ilações ad hominem, não vou tentar discernir se o que moveu os ministros supremos foi a covardia, a incapacidade intelectual ou ambos, mas é terrível notar que nenhum ministro em momento algum colocou a questão central da violação dos direitos políticos de uma presidente e de um ex-presidente.

As revelações recentes das demais conversas, entre elas a de Lula com Temer e com políticos do PMDB e de outros partidos mostraram quão falaciosa era a tese de Moro. Se ela já não servia para justificar a interdição de Lula naquela época, agora ela se mostra como um puro engodo. Lula estava preocupado em estabilizar o sistema político e garantir assim governabilidade à Dilma.

Esse episódio mostra que o lawfare movido pela Lava Jato está diretamente relacionado à crise política que levou à deposição de Dilma e, em seguida, à deterioração crescente do sistema político brasileiro. Por meio da Lava Jato, juízes e procuradores, alguns de 1º instância, tornaram-se agentes políticos capazes violar o sistema básico de direitos e, assim, ferir de morte a República.

O fato de que os ministros do STF, alguns deles professores de direito constitucional, terem deixado de proteger o exercício fundamental do direito político em um momento tão crítico da história nacional é algo que nos cobre a todos de vergonha e desesperança. Não há instituições que funcionem sem seres humanos minimamente capazes de ocupá-las dignamente.

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