Justiça

Entre espelhos: o retrato de Sérgio Moro não corresponde à realidade

Construída todos os dias por anos, imagem de Moro cumpridor da lei já era controversa. Atualmente, é uma grande piada

Foto: Marcos Corrêa/PR
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Quem com vazamento ilegal fere, com vazamento ilegal será ferido.

Sérgio Moro caminha pelo quarto, de um lado a outro, enquanto ajeita o sapato e a gravata. Um sorriso torto, algo ingênuo, escapa-lhe do canto esquerdo da boca, enquanto o linho, cuidadosamente passado, assenta-lhe o corpo. No espelho, por cima do olhar moribundo, tateante, pesaroso, ergue vitorioso o ar de superioridade, que tanto lhe davam o tom, como denunciado solenemente pela sobrancelha arqueada, orgulhosa.

O silêncio e a entonação reservada, guardados como promessa da justiça branda, transformavam-se em poder egóico, faziam sentir o peso daquela toga, cada vez mais pesada, agora como peso morto, que Moro finalmente poderia tirar, junto com seus inimigos, todos eles pesando em seu caminho, pesarosos, custasse o que custasse, mesmo a confiabilidade da justiça, destroçada.

Do lado de cá, o semblante leve como vitória, mas, no seu retrato no espelho, sentia os ombros massacrados, pesados, enquanto olhava para si, vestido no seu desejo pelo poder, silentemente transformado, saboreado escondido como fruta proibida. E então, enquanto caminha pesadamente pelo cômodo, como se sua posição fosse invisível, o olhar escorre torto do lado de lá do espelho: era mesmo como se olhasse no espelho de si. Bate no ombro, como se o linho estivesse amarrotado ou, ainda, houvesse alguma poeira insistente. De sua posição vertical, Moro se transporta para o mundo invertido, o mundo do lado de lá, interceptado em algum momento de sua narrativa.

Moro e Bolsonaro. Foto: Evaristo Sa/AFP

O Moro de fora do espelho fala: “Nunca me coloquei numa posição central nessa operação. Isso é uma coisa que eu particularmente rejeito“, enquanto o Moro do lado de lá coordenava milimetricamente a Lava Jato, escolhendo quem deveria realizar a audiência, quando e de que forma as fases iriam se desdobrar.

Enquanto o Moro do mundo de cá entende haver um “ataque à Lava Jato”, com a tentativa de “evitar o prosseguimento das investigações contra criminosos que receiam que as investigações possam chegar até eles e que estão querendo se servir desses expedientes para impedir que as investigações prossigam“, o Moro do mundo invertido esbraveja tresloucado, tentando evitar, por meio de expediente de federalização, que as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes cheguem à família Bolsonaro, oficiando, em nome do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, para impedir a continuidade das investigações pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, a sua chegada aos prováveis criminosos e a elucidação da verdade.

O Moro do mundo de cá diz que “não vamos tomar nenhuma atitude contra a liberdade de imprensa“, enquanto o Moro do mundo invertido assina a diabólica portaria 666, nitidamente confrontando o principal representante do portal investigativo The Intercept Brasil.

Foi com a Vaza Jato que se desmoronou o Moro do lado de cá, que é, inegavelmente, a imagem que vemos refletida no espelho, mesmo que contraditórias as figuras. Agora o Moro do mundo invertido fica cada dia mais claro, cínico e visível para as pessoas comuns, aquele que confundiu o seu papel de juiz com o de delegado de polícia ou promotor de justiça.

Se antes se erguia forte sob a figura indisputável do heroísmo esbravejante da faxina moral, jurando incólume nunca ter se corrompido ou desvirtuado, com a Vaza Jato é revelado um Moro tirânico, mesquinho, corrompido, minguado, como no retrato de Dorian Gray, que esconde a sua pior parte, enquanto do lado de cá guarda-se a boa aparência, mesmo que forjada.

O Moro juiz da Lava Jato é o mesmíssimo Moro ministro da justiça de Jair Bolsonaro, um agente não de polícia, mas de política; política mal feita, a reboque, que cinicamente usou de sua função de juiz para transformar seus inimigos políticos em bonecos destroçados, desmontados, vestido em sua falsa imparcialidade, agora carcomida.

O Moro do lado de lá do espelho é cada vez mais o mesmo Moro do lado de cá que, para falar como certa procuradora da Lava Jato, “viola sempre o sistema acusatório e é tolerado pelos seus resultados”. Como ministro de justiça, continua violando e sendo tolerado, por ter representado à Presidência uma engendrada “imparcialidade útil”.

Esse é o Moro no espelho: fez a condução coercitiva ilegal de Lula e, embora juiz, tornou-se parte no processo; fez vazar escutas telefônicas parciais com fins nitidamente politiqueiros e, agora, tem seu próprio vazamento – quem com vazamento ilegal e parcial fere, com vazamento ilegal e parcial é ferido.

Ele, que abusava das prisões preventivas – alongadas, retroativas e impróprias -, é o mesmíssimo Moro vingativo da polícia federal, esta que pediu a prisão temporária de Dilma Rousseff, em processo que a ex-presidente sequer constava nos autos como investigada e, ainda, em data estratégica para constranger o Supremo, nas vésperas do julgamento da prisão em segunda instância, o que foi corretamente indeferido pelo ministro do STF e relator da Lava Jato, Edson Fachin.

O que Moro faz, com a sua narrativa de criminalizar os outros – sempre os outros que são os criminosos, é claro! – é “jogar para as calendas” o fim da Lava Jato. Do lado de lá, o Moro tautológico encontra inevitavelmente com o Moro de cá. A toga, de peso morto, foi loteada como moeda servil. No retrato de Sérgio Moro, junto com a imagem ruída da justiça, pelo uso político e estratégico do direito, rui mesmo o Brasil, loteado e desmoronado. Não ver que Moro desde sempre era o do lado de lá nos fez pagar um preço alto demais.

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