Opinião

Enquanto a Bolsa de Valores bate recordes, 19 milhões de pessoas estão na pobreza

‘Como refletir com a população que este é um país riquíssimo, explorado por uma minoria internacional e nacional?’

(Foto: Agência Brasil)
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“Sou biólogo e viajo muito pela savana do meu país. Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros, mas que sabe ler o seu mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto.”
Mia Couto.

O filósofo político Antonio Gramsci – provavelmente, o mais importante do século XX – centrou a interpretação e a ação políticas na questão cultural.

De fato, entender e traduzir nossos sentimentos e pensamentos para o universo cultural do outro constitui um dos maiores desafios individuais e coletivos.

Nesse sentido, é esclarecedor o simbolismo do Pentecostes cristão: o Espírito Santo fez com que todos os presentes ao cenáculo falassem em línguas diferentes, de sorte que os estrangeiros que testemunharam a descida do Paráclito puderam entender as pregações dos Apóstolos em suas próprias línguas/culturas, mas todos se entendendo mutuamente, apesar das diferenças linguísticas, culturais.

Vertendo o simbolismo religioso para a esfera política, poder-se-ia dizer que essa é a tarefa principal dos libertários, daqueles que querem que os oprimidos rompam as cadeias que os atam desde suas próprias cabeças.

No caso brasileiro, como refletir com a população que este é um país riquíssimo, explorado por uma minoria internacional e nacional que vive regiamente às custas do sangue, da opressão?

Uma tarefa titânica, porém cada dia mais necessária.

Com efeito, na contemporaneidade, o fordismo, que pregava salários compatíveis para os empregados poderem consumir o que produziam, perdeu o lastro. A tecnologia deixou de depender, em grau inaudito, da mão de obra, rompendo-se, pela ausência do volume de mão de obra para a produção e os serviços, o vínculo relacional entre produção e consumo.

Parcialmente desvinculada da mão de obra, a produção excede, cada vez mais, a capacidade de consumo das pessoas, muitas delas e em número crescente, incapazes de ingressarem no mercado consumidor, pela falta de ingressos para acederem.

Rompeu-se, dessa forma, o pacto entre a produção e o consumo, nas sociedades capitalistas. A situação mais simbólica e dramática diz respeito à produção e consumo de alimentos, literalmente vitais para os seres humanos. De fato, embora haja produção suficiente para alimentar toda a população mundial, quase um sétimo dos habitantes da Terra, perfazendo em torno de um bilhão de pessoas, está em situação de insegurança alimentar, por não ter acesso aos alimentos, por não dispor de recursos financeiros mínimos.

No Brasil, enquanto as Bolsas de Valores batem recordes, 19 milhões de pessoas estão mergulhadas na pobreza mais indigna, injusta e abjeta.

Nos Estados Unidos da América, os eleitores responderam à nova situação, elegendo um projeto neo-keynesiano, pelo qual o estado voltou a orquestrar a recuperação socioeconômica, com um plano estratégico mínimo de país.

Destarte, não é de estranhar que sejam os países do Oriente que atualmente superem o Ocidente em pujança socioeconômica, tendo em vista o esforço que fizeram em solidificar projetos nacionais. A título de exemplo, no campo econômico, o Vietnã acaba de superar o Brasil em volume de exportações. No campo social, com 96 milhões de habitantes, o país asiático registrou 53 mortos pela COVID, contra mais de 470 mil, no Brasil, com 220 milhões de habitantes…

Portanto, fica explícita a necessidade de os países concertarem novos pactos sociais.

Para isso, será necessário encontrar uma linguagem comum, dentro de cada país e entre eles, pois o planeta dá sinais, cada dia mais evidentes, de esgotamento socioeconômico e ambiental.

No entanto, no Brasil, vamos em dramático sentido contrário ao concerto: os ataques ao projeto estratégico são diuturnos, por parte da oligarquia nacional e os braços armados. Anunciam-se privatizações que desmontam a espinha dorsal do país no campo energético, como a da ELETROBRAS; e das comunicações, como a dos Correios.

No campo ambiental, o desastre não é menos vasto: a Amazônia nunca foi tão desmatada, os povos contaminados, o subsolo degradado e suas riquezas, contrabandeadas.

Sobre esse pano de fundo tremendo, descobrimos que o principal braço do império, a Lava Jato, não apenas destruiu a indústria da construção civil nacional, que já detinha 3% da mundial, mas também – e mais grave ainda – demoliu vidas, como a do ex-presidente da ELETRONUCLEAR, Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, condenado a 43 anos de prisão, por um “juiz” que, soube-se agora, queria, assim, atemorizar outros inquiridos. Na história da justiça mundial, nunca se terá ouvido falar de prática tão vil e distante da Justiça. Esclarecedor o fato de que o referido “magistrado” tenha a bagatela de 60 imóveis na cidade do Rio de Janeiro, segundo a imprensa.

Para iluminar as trevas, em Paulo Freire – Vida e Obra, volume organizado por Ana Inês Souza e editado pela editora Expressão Popular, encontramos luzes e diretrizes para o Brasil e o mundo, neste ano do centenário do educador pernambucano: “Em realidade, não nos será possível nenhum verdadeiro equacionamento de nossos problemas, com vistas a soluções imediatas ou a longo prazo, sem nos pormos em relação de organicidade com a nossa contextura histórico-cultural. Relação de organicidade que nos ponha imersos na nossa realidade e de que emerjamos criticamente conscientes. Somente na medida em que nos fizermos íntimos de nossos problemas, sobretudo de suas causas e de seus efeitos, nem sempre iguais aos de outros espaços e de outros tempos, ao contrário, quase sempre diferentes, poderemos apresentar soluções para eles.”

Para todos, a fórmula do êxito: “Daí, para nós, o nosso grande problema está em sabermos dar um passo. Dar o passo da assistencialização para a dialogação. Dar o passo da autoridade externa, impermeável e autoritária, rígida e antidemocrática, que nos marcou intensamente, para a autoridade interna, permeável, crítica, plástica, democrática.”

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