Alberto Villas

[email protected]

Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte

Só sei que o meu inglês está bom ou ótimo pra trabalhar na Organização Mundial de Saúde. Look! The evolution of the coronavirus in the world

Foto: Daniel Castellano/AFP
Apoie Siga-nos no

1.

Sou um ser do outro mundo. Bati muita máquina, sujei muito as mãos com papel carbono, passei muito branquindo em laudas e mais laudas de jornal. Foquei, cliquei, revelei fotos, diagramei com régua e compasso. Mexi bastante para conseguir misturar o Toddy e acendi o fogão com palito de fósforo. Na primeira vez que votei, escrevi abaixo a ditadura! na cédula de papel e joguei dentro da urna. Li muito Mandrake, Flash Gordon, Luluzinha e Bolinha. Me intrigava aquela plaquinha menina não entra, eu que gostava tanto das meninas: Suzana, Vandinha, Dayse, Beth, Teresa. Li as viagens de Gulliver, Fernão Capelo Gaivota, Lobo da Estepe, Plano de Voo e Vidas Secas. Escrevi muitas cartas em papel de seda, viajei de carona pra Bahia na carroceria de caminhões, fui atrás do trio elétrico de Dodô e Osmar, nunca aprendi a mergulhar direito, a dirigir um automóvel. Torci pelo Brasil em algumas Copas do Mundo, contra em outras. Viajei em jipes sem cinto de segurança porque não havia cinto, comi goiaba sem lavar porque não havia agrotóxico, quando o mundo ainda não era tech, não era pop. Ouvi muito Quarteto em Cy, Quinteto Violado e MPB-4.

Colecionei Conhecer, Os Cientistas, Gênios da Pintura e a Bíblia Mais Bela do Mundo. Conheci Henfil no Jornal dos Sports, Glauber Rocha na Fairplay, Paulo Francis na Diners, Clarice na Senhor. Vi chegar o CD, o microondas, o velcro, a senha, as cores na TV. Plantei um chorão na Rua Rio Verde, tive quatro filhos e escrevi nove livros. Salário a combinar.  

2.

Não saio, mas não sei se é pra sair ou pra ficar. Não sei se os shoppings estão abertos ou fechados, se os livros estão expostos, se o milkshake de Ovomaltine ainda existe, se existem vagas nos leitos na UTI de Caruaru. Não sei se é um metro ou dois metros de distância, se o rodízio está valendo, se os bares estão abertos, onde estão sendo enterrados os mil mortos por dia. Não sei se estão tomando hidroxicloroquina ou não, se os respiradores que não funcionam voltaram pra China, quando é que vai ser o próximo Fla-Flu, se o inverno vai chegar, se o ministro da Saúde vai ser nomeado, o que vai acontecer com o da Educação que não tem doutorado em Rosario, nem pós em Wuppertal. Não sei o que estão fazendo os milhões de contaminados. Onde vivem, o que fazem, o que comem. Não sei a cor da fase de São Paulo, se amarela, vermelha ou laranja. Não sei se a máscara do Doria é Dior, Chanel, Kenzo ou Gucci. Não sei mais a quantas anda o meu colesterol, não sei se o Doutor Brandão está atendendo ou não. Não sei como vai minha aldeia, como vai São Miguel dos Milagres, se o mar ainda vai e volta em Pipa, se o peixe ainda é fresco em Carneiros, se aquelas casas pobres ainda estão com os telhados cheios de antenas de TV. Não sei quanto custa meia dúzia de caqui, um saquinho de limão, uma caixinha de kiwi. Não sei se o feirante continua fazendo piada com a morena que passa fazendo pirraça tirando o sossego da gente. Se a moça do caixa do SuperVille continua perguntando se é dinheiro ou cartão, se não tem uma nota menor. Só sei que o meu inglês está bom ou ótimo pra trabalhar na Organização Mundial de Saúde. Look! The evolution of the coronavirus in the world is very important.  

3.

Cansei de ouvir que precisamos retirar a máscara segurando apenas pelo elástico, cansei de ouvir que as lojas vão reabrir, mas com uma série de restrições, cansei de ouvir a porcentagem de leitos disponíveis de UTI. Cansei de ouvir a pergunta quando é que isso vai acabar? Cansei de ouvir lives e podcasts. Não deveria. Deveria estar prestando atenção em tudo, em cada palavra, em cada acorde do novo disco de Neil Young, guardado na gaveta desde mil novecentos e setenta e cinco. Deveria estar mais atento ao avanço da ciência, ao estágio da vacina, a cloroquina que tomo para artrite. Mas não. Não quero ouvir que as escolas vão reabrir em dois meses, eu me lembro dos Happenings cantando I see you in September e meus olhos brilham como na juventude, quando perdi aquele primeiro amor que era puro e verdadeiro. Não posso mudar de assunto.

Cansei de ouvir sobrenomes, nomes próprios e impróprios: Weintraub, Maia, Jair, Flavio, Decotelli, Fabricio, Wassef, Heleno, Onyx e Braga Netto. Não devia ser assim, devia ser assado. A revolução dos pretos, a voz de Mano Brown falando tá ligado dotô pro Drauzio, Maitê Lourenço na capa da Exame, os punhos cerrados na Rolling Stone, o grito parado no ar na capa da Society. Não esperava viver essa confusão urbana, suburbana e rural, não esperava por isso ao ver aproximar os meus setenta anos. Esperava uma festa com cajuzinho, olho de sogra, canudinho, bombom de uva verde, brigadeiro e um beijinho doce. Me ligo nas news. Semana que vem o Museu do Louve vai reabrir suas portas de vidro depois de quatro meses. E a Monalisa vai estar lá com aquele sorriso enigmático de sempre. Rindo de quê, preciso saber. 

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar