Opinião

Devemos defender e nos orgulhar da existência do Sistema Único de Saúde

Entender o que está ocorrendo com o SUS e lutar para impedir que sua destruição seja feita por falta de dinheiro é uma questão de cidadania

Sistema Único de Saúde (Foto: Agência Brasil)
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Um estudo realizado pelo instituto francês Ipsos sobre as maiores preocupações de populações de 28 países de todo o mundo mostrou que nos brasileiros a saúde está entre as principais fontes de ansiedade (46%), disputando com a violência e a sensação de insegurança (47%). Segundo o Ipsos, enquanto em média 25% da população dos países pesquisados se preocupam com a atenção à saúde, no Brasil é quase o dobro. E, a depender da intenção do governo de retirar uma enorme fatia do orçamento destinado à saúde, certamente se tornará não só preocupação, mas pesadelo. Hipoteticamente, deixarão de ser instaladas 68 Unidades Básicas de Saúde (UBS) em cada um dos 5560 municípios brasileiros, se considerados os valores de referência do Ministério da Saúde de 2017.

O corte que o governo pretende aplicar, retirando 9,46 bilhões de reais do Orçamento se ancora na Emenda Constitucional 95, bem conhecida como a PEC da Morte. Ao delimitar um teto de “gastos”, e sem considerar o aumento da população, reduzirá dos já insuficientes 132,2 bilhões previstos para 2020 para 122,9 bilhões. Confirmado à imprensa pela Secretaria do Orçamento Federal, o corte ainda não chegou à Câmara dos Deputados. Mas prevemos que assim como houve impactos com os cortes de 2017/18 e 2018/19, os atuais, se concretizados, aumentam a lista das perdas ocorridas nesse período e que se agravaram no atual governo.

Diante desta notícia, as pessoas que pagam ou usufruem de algum plano de saúde privado podem ter uma sensação de alívio. Mas, para sua tristeza, elas também serão atingidas. Entre os maiores sistemas de saúde pública e universal do mundo, o SUS presta serviços não só em forma de consultas e exames. É o organismo público que fornece as vacinas, fiscaliza alimentos, certifica medicamentos, mantém atendimento de urgência e emergência, realiza transplantes, atravessa florestas e rios para levar o atendimento às populações mais distantes. Além disso, mantém abertos hospitais 24 horas por dia e realiza procedimentos assegurados por lei, como o tratamento de câncer, HIV, reabilitação, e outros. Está disponível a todas as pessoas, mesmo com filas, atrasos e todas as complicações que são conhecidas dos brasileiros e brasileiras.

Como diz o conhecido médico Dráuzio Varela, “o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes a levar medicina gratuita para toda a população”. O médico complementa que a Estratégia Saúde da Família, hoje tão atacada como sabemos, e que tem agentes comunitários em equipes multiprofissionais que atendendo de casa em casa dois terços dos habitantes, “é citado pelos técnicos da Organização Mundial da Saúde como um dos importantes do mundo”.

Daí porque as razões para as preocupações com a saúde mudaram depois de 2016. Até a data os dados anuais do Latinobarômetro apontavam que a manutenção da saúde era uma preocupação importante dos brasileiros, que reclamavam e continuam reclamando do acesso e da qualidade. Hoje, novos problemas estão registrados em indicadores de crescimento de agravos de saúde.

O golpe político de 2016 foi também o golpe na educação, saúde, assistência. O perverso congelamento do orçamento, chamado de regra do teto de gastos, feito sob encomenda por Temer aos que o apoiaram, estabeleceu limites para o gasto federal. E independentemente do aumento das demandas nessas áreas, como por exemplo o crescimento populacional ou novas demandas adquiridas em processos de lura, guilhotina-se o serviço público e deixam-se milhões de pessoas sem atendimento.

Aqueles dois desafios que antes eram de acesso e qualidade, agora cresceram em decorrência do maior golpe contra a saúde pública – o desfinanciamento – e a privatização como única alternativa. Ou até extinção de serviços. Todas tem uma fonte. Em comum: a política ultraneoliberal que se impôs ao Brasil em 2016 e que se aprofundou em 2019 com Bolsonaro.

Os resultados são assustadores, mesmo antes da virada do ano: fim do Programa Mais Médicos, redução drástica do Programa Farmácia Popular, desmonte da atenção à saúde mental e sua descaracterização, desarticulação da política de saúde indígena, redução no fornecimento de medicamentos para tratamento do HIV/Aids e de insumos de prevenção como preservativos, profilaxia de HIV/Aids e outras DSTs para vítimas de violência sexual e até mesmo a falta de vacinas com o cancelamento de contratos com laboratórios públicos e privados.

O viés ideológico e moralista ainda contaminou as políticas de saúde atuais, com o recolhimento da Caderneta de Saúde do Adolescente, que fazia o acompanhamento de milhões de meninas e meninos, e até mesmo a retirada de preservativos de escolas.

Esta postura vai na contramão das urgências no Brasil, em que se verifica o crescimento de mortes violentas de adolescentes e jovens, da mortalidade materna e mortalidade infantil. Quanto às epidemias, um aumento de 339% por dengue. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a cada aumento de 10% na cobertura por estratégia de Saúde da Família se havia reduzido 4,6% a mortalidade infantil. Como enfrentar esta realidade em que a tendência é a retirada e o corte de políticas de prevenção e tratamento?

Sabemos que a cultura é a última mudança social entre as muitas que ocorrem no desenvolvimento dos povos. O Brasil vem de tradições de muita exclusão e violência com o nosso povo, de desigualdades tão profundas, que nos levam a ter dificuldades de reconhecer nossos direitos e conquistas. O SUS foi e é uma construção do povo brasileiro, entrou na Constituição Federal de 1988 como “direito de todos e dever do estado” e ainda que contenha defeitos é um dos nossos mais significativos feitos. Mexer no SUS é mexer com a vida de milhões de pessoas de todas as idades e origens sociais, das mães com seus bebês, dos trabalhadores e trabalhadoras, de jovens, indígenas.

Entender o que está acontecendo com o SUS e lutar junto para impedir que sua destruição seja feita por falta de dinheiro é uma questão de cidadania. Parafraseando o Dr. Dráuzio Varela: “Devemos defender o SUS e nos orgulhar da existência dele”.

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