Walfrido Jorge Warde Junior

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Advogado, escritor e empreendedor. Presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE)

Opinião

Declarações de Bolsonaro e Guedes são atentado à ordem constitucional

Frases traduzem-se numa oposição à democracia, se não num afrouxamento de resistências contra uma guinada autoritária

O ministro da Economia Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
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Não há regime autoritário possível sem sustentação popular. Tiro, porrada e bomba não são capazes de conter o povo. A soberania popular, ainda que amestrada pela opinião pública (a opinião que no povo se inculca), jamais deixará de assombrar aqueles cujo poder depende, em qualquer hipótese, da legitimação ou, ao menos, da omissão dos seus representados. As ditaduras existem, portanto, porque a maioria compactua com elas. A servidão é voluntária, como explicou La Boétie, um jugo deliberado, uma corrupção do desejo inato de liberdade, por conformismo ou por colaboração.

As declarações de Bolsonaro, que pretendem esgarçar as hipóteses de intervenção militar para os fins da Garantia da Lei e da Ordem, e as alusões de Paulo Guedes à reedição do Ato Institucional número 5, o famigerado e ignóbil AI-5, são testes à tolerância das brasileiras e dos brasileiros. Balões de ensaio para saber se o seu desalento, se a sua insatisfação nauseante contra todos os governos da Nova República, traduzem-se numa oposição à democracia, se não num afrouxamento de resistências contra uma guinada autoritária. E tudo, absolutamente tudo, indica que o resultado do experimento lhes foi positivo.

Atualmente, uma orientação da Presidência da República pode atribuir às Forças Armadas a execução de operações militares de Garantia da Lei e da Ordem quando se caracterizar o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, nas hipóteses restritas de gravíssimas perturbações da ordem instituída. É uma competência do chefe do Executivo, que lhe atribui a norma do artigo 142 da Constituição, regulamentada pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001.

Fazê-lo, contudo, não é um passeio no parque. Somente um cataclismo social e a ausência ou o esgotamento, repise-se, de instrumentos regulares de segurança, sob expresso reconhecimento dos chefes do Poder Executivo federal ou estadual no comando, justificaria essa decisão grave e excepcional, circunscrita no tempo e no espaço.

As ações das Forças Armadas, nesse contexto, submetem-se à Justiça Militar, sobretudo para os fins de responsabilidade de seus integrantes por abusos e por crimes.

 

Há alguns dias, contudo, Bolsonaro afirmou seu desejo de enviar ao Congresso um projeto de lei para expandir as ações dessa natureza, de modo a viabilizar a reintegração de posse no campo. Sobre a iniciativa, disse o seguinte: “Quem estiver portando uma arma de forma ostensiva, vai levar um tiro”.

No mesmo dia, à noite, esclareceu que a reforma legal cogitada deveria criar uma excludente de ilicitude para o assassinato, por forças militares, como medida para evitar e conter protestos no País.

O chefe da nação foi logo em seguida acompanhado, num verdadeiro e macabro jogral, por seu ministro da Economia, que, ao se referir indiretamente às críticas sobre a sua frustrante atuação (ao menos para os pobres e remediados), advertiu: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática”.

São, ambas as declarações, ameaças mal disfarçadas de opressão popular pelas Forças Armadas. Um verdadeiro escândalo, uma atentado em si à ordem constitucional, na medida em que agentes do Estado, do mais alto escalão da hierarquia do governo, afrontam uma potencial sublevação com violência mortal e supressão de direitos. É certo que nenhuma oposição significativa confrontou tamanho descalabro, exceto aquela que, do seu sofá, uma raquítica resistência democrática expressou nas redes sociais e em periódicos crescentemente ignorados pela massa.

Uma evidência, talvez, de que no povo comece a se infiltrar a convicção de que a democracia é uma utopia impossível, talvez indesejável, em meio às fake news, ao vozerio irracional dos palpiteiros, à indistinção entre o meio certo e o absolutamente errado, à carestia e ao esvaimento de todos os sonhos.

Uma indiferença daninha de quem tem na sobrevivência diária o foco de todas as atenções. Uma autorização travestida de silêncio, um sinal desesperador de risco de morte da autodeterminação. Um desalento filho da descrença nos administradores da democracia e da decepção diante dos seus resultados.

Mais uma falsa crença, fácil de disseminar entre aqueles que não se lembram ou que não viveram a angústia de ter de se calar, de não poder pensar, de ter de existir sob os trilhos do trem. Não vejo no horizonte o povo, heroico, no seu cavalo branco, para salvar o povo. Mas vou continuar por aqui, onde estou, à sua espera, para me juntar a ele. Eu e a minha cisma maldita. Estamos entregues por fim?

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