Walfrido Jorge Warde Junior

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Advogado, escritor e empreendedor. Presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE)

Opinião

Coronavírus: a mudança de hábitos cria e destrói companhias

Grande parte do consumo será financiada pelo Estado, com o que os lucros deixarão de ter o seu sentido atual

comércio (Foto: Gero / Fotoarena)
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A pandemia da covid-19 ameaça alterar o sistema de incentivos no âmbito das empresas, as razões que nos levam a organizá-las e nelas investir. É provável que a pandemia e as perspectivas de várias ondas de contágio, até que advenha uma cura ou uma vacina, sejam capazes de dizimar empresas descompassadas com os novos modos de vida.

Quem precisa de um vestido de festa? E de inúmeros pares de sapato? E do carro do ano? Os modismos, ao menos a maioria deles, perderão qualquer sentido no isolamento social. As famílias já não se sentam às mesas de restaurantes, tampouco os casais em encontros românticos. Os amigos não se batem mais sobre qual deles fez a viagem de férias mais emocionante. Voar de avião, hoje, é risco de vida, assim como sempre foi arriscado, num país violento como o nosso, andar de ônibus.

As maiores empresas do mundo, mas também as pequenas e médias, gravitavam no entorno dos nossos hábitos. A mudança de hábitos cria e destrói empresas. Afetadas pelo modo como combatemos a pandemia (ou melhor, pelo modo como garantimos o mínimo de dignidade aos enfermos), elas enfrentarão diminuição de receita e demissões. Haverá uma redução do consumo e da renda, num ciclo vicioso que afetará as cadeias produtivas e os ativos que delas derivam. Esse estado de coisas desequilibrará as concessões públicas a ponto de ruptura, derrubará os lucros das instituições financeiras, aumentará os riscos de crédito a ponto de escasseá-lo. Corroerá a poupança, na medida em que todos os ativos se desvalorizam.

Algumas empresas, entretanto, em razão de sua essencialidade, a exemplo daquelas cujas atividades estão centradas em produtos ou serviços médicos, ou em outros gêneros de primeira necessidade, continuarão a experimentar forte demanda, mas de uma clientela empobrecida. Deverão se deparar com a necessidade de diminuir a lucratividade, sob pena de uma intervenção do Estado, de modo a garantir a universalização dos produtos ou dos serviços essenciais que ofertam. Discute- se, aliás, ainda que com alguma confiança na mão invisível, a lucratividade excessiva e oportunista de alguns setores econômicos privilegiados pela crise.

Alguns dirão que este é um estado de coisas transitório, que as forças e os agentes de mercado se reorganizarão, sob as mesmas premissas e com a mesma voracidade dos tempos pré-pandêmicos. É possível. Mas quando isso vai acontecer? E, até que aconteça, o que será do mundo e das empresas?

Quem precisa de um vestido de festa? E de inúmeros pares de sapato? E do carro do ano?

As perspectivas mais realistas afirmam que a superação só virá em dois ou três anos, com o advento de uma vacina segura, testada, fabricada em massa e distribuída para todo o planeta. É o tempo de uma longa guerra. E, na guerra, só o planejamento permite sobreviver. Serão indispensáveis a centralização do planejamento e a coordenação dos mecanismos à sua execução. A desarticulação produzirá cadáveres.

Apenas o Estado é capaz de planejar todo o sistema econômico e dispõe dos instrumentos para fazê-lo. Dispõe de técnicas de regulação total, das quais deve- rão se desdobrar tantas outras, para que a produção atenda, em qualidade, quantidade e preço, às necessidades urgentes da população.

Uma articulação intensa e de novo jaez entre o Estado e as empresas que sobreviverem alterará o esquema de incentivos que nos empurra a empreender. A bruta realidade que invade os mercados deverá diminuir a distância entre o Estado, grande controlador público, e o controlador privado, raptor contumaz do Estado. Reduzirá também as distâncias entre o controlador e os acionistas minoritários. Alguns conflitos deixarão de ter propósito, enquanto outros, compassados com o interesse público, definitivamente infiltrado nas empresas, terão protagonismo.

As relações serão virtualizadas, absortas pelas novas tecnologias que, de uma vez por todas, banirão os vestígios das ultrapassadas, cuja adoção se escora em interesses econômicos contramajoritários e contraproducentes. A burocracia ineficiente e cartorial será em grande medida superada, pois a sua ineficiência e os seus catastróficos efeitos serão exibidos para a desmoralização de governos e agentes públicos. O controle das ações e dos operadores de mercado, nesse diapasão, deverá se ampliar, sob os olhos estatais que tudo veem. E, excitados pela perspectiva desse poder, os usurpadores de sempre tentarão conspurcá-lo.

Grande parte do consumo será financiada pelo Estado, com o que os lucros deixarão de ter o seu sentido atual, superados pela centralidade do poder que assumirão aqueles que alimentam, vestem e proveem as necessidades básicas do povo.

O Estado será, portanto, a salvação da vida, mas o risco do fim das liberdades. A solução da crise não importará na reversão de suas consequências estruturais, sobretudo se elas significarem a assunção de poderes ilimitados e altamente concentrados. O príncipe agirá para se manter no poder, sabe ser mau, e da maldade se servirá de acordo com a necessidade, jamais para o restituir ao verdadeiro soberano, desarticulado, amedrontado e empobrecido.

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