Opinião

Editorial: Como símbolo do Brasil, Pelé é perfeito

‘Não houve quem, com a bola nos pés, alcançasse metas iguais’, escreve Mino Carta

Foto: Paulo Pinto/FotosPublicas Foto: Paulo Pinto/FotosPublicas
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Muito tempo atrás, quando ainda dirigia a revista Veja, da qual me demiti no começo de 1976, lá pelas tantas conversava com um redator brilhante, sagaz em política, na observação do mundo, mas por natureza tímido, Renato Pompeu. Perguntávamos um ao outro quais heróis definitivos o Brasil poderia ostentar. Chegamos à conclusão de haver somente um, Pelé. Volto 45, 46 anos depois a pensar em Pelé no momento em que completa 80 anos. Como de hábito, o tempo galopou, mas não houve mudanças na classificação.

 

Ao pensar em heróis definitivos, refiro-me aos que são lembrados pelas estátuas em praça pública, de mármore, bronze ou pedra macia de Minas Gerais. A casa-grande, que escreveu até hoje a nossa história como cabe aos vencedores, nos impingiu falsos heróis, retóricos, criados para nos confundir. Penso, por exemplo, nos bandeirantes, caçadores de esmeraldas, indígenas e escravos fugidos. São eles os “desbravadores”. Não me permito esquecer o Duque de Caxias, herói, sim, do genocídio paraguaio, torpe figura de espada enferrujada.

A história do Brasil, carente de heróis autênticos, conta 500 anos inglórios, depredação selvagem, descaso com o povo, cuja natural resignação manteve de pé a senzala. É uma história de golpes praticados com a inesgotável contribuição da força militar, sempre incumbida e sempre disposta ao jogo sujo. Desde a fundação da República, o Brasil padeceu, em consequência desta violência cega, pronta a intervir para manter a imobilidade em um país que nunca conheceu a autêntica democracia.

O Brasil teve dignas figuras de pensadores que souberam chegar às suas entranhas. Refiro-me a todos aqueles que contaram a verdade, a própria história sem subterfúgios, e cito Euclides da Cunha, Machado de Assis, Lima Barreto, Castro Alves, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Celso Furtado, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues e mais alguns, sem esquecer de Mário de Andrade, o inventor de Macunaíma. Ao adentrar esta seara, não faltará a propaganda oficial para soletrar que Rui Barbosa foi o Águia de Haia.

A respeito, vale a pena recordar a observação de John Maynard Keynes, um jovem economista inglês que também estava em Haia naquela conferência que pretendia traçar os destinos do mundo. Fulminou Keynes: “Como é enfadonho este senhor Barbarosa”. Aludia ao nosso Águia, talvez mais aparentado com um urubu, pássaro da desgraça a rondar a morte e o lixo. Volto ao herói definitivo, Edson Arantes do Nascimento, Pelé para todo o sempre. Recordo uma conversa que eu tive com Sócrates, amigo e grande jogador de futebol, para deslizar na costumeira comparação entre Pelé e Maradona.

Sustentava Sócrates que o craque argentino dotado da mão de Deus haveria de ser analisado a partir de suas pernas curtas capazes de o manterem de pé em quaisquer situações, como também se deu com Romário. Pernas curtas para jogadores transcendentais no espaço curto. Estes jamais desmoronavam, a despeito de qualquer marcação, por mais agressiva que fosse. Sócrates não percebia a razão da comparação com Pelé.

Pelé é o atleta perfeito, e só faltava mais isso, baixo para os padrões do futebol atual, mas com uma capacidade de impulsão que poderíamos definir monstruosa. Basta recordar o gol marcado de cabeça contra a Itália na final de 1970, no confronto com o zagueiro Burgnich, que se valia de, no mínimo, 10 centímetros a mais. “Comparação inútil e até ridícula. Pelé foi único e a ideia que hoje se cultiva a seu respeito, aquela que o entroniza como rei, sem dúvida é também perfeita, ninguém igual a ele”, dizia Sócrates, cuja percepção do jogo eu muito admirava.

Não sei até que ponto a ausência de heróis definitivos é um sintoma grave do retardo de um país, o nosso, no caso. De todo modo é um fato indiscutível, sem perceber nesta afirmação qualquer gênero de limite à importância de Pelé. Como símbolo do Brasil, ele é também perfeito, porque não houve quem, com a bola nos pés, alcançasse metas iguais. E isso, no fundo, é o que nós todos desejamos.

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