Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Com o Flow, Bolsonaro conquistou sua live dos sonhos

O que a participação de Jair Bolsonaro no podcast ensina sobre comunicação, política e democracia

Créditos: Divulgação
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Tivemos algumas tantas aulas (e, talvez, lições) nas mais de cinco horas que o podcast Flow deu de presente a Jair Bolsonaro. Enumerarei algumas que, nem de longe, são capazes de esgotar as nuances e relevância do que se viu.

Comecemos pelo aspecto estratégico. Bolsonaro mostrou que está muito bem preparado para encarar eventos midiáticos de campanha. É notável como conseguiu melhorar sua performance, já muito eficiente e certeira em 2018, vide as entrevistas que deu para o programa Roda Viva e na bancada do Jornal Nacional. 

Não em termos de dicção, capacidade de organizar ideias, formar sentenças bem elaboradas ou lidar com os fatos seguindo princípios éticos e apego à verdade. Nada disso. Bolsonaro. Aprimorou, na verdade, a tática que adotou em 2018: mente com mais convicção, distorce mais os fatos, inventa mais dados, levanta a voz na hora certa, manipula muito bem falácias, falsas equivalências e eufemismos.

A falta de uma ética profissional como a do jornalismo  apesar de todas as suas dimensões ficcionais e imperfeições – já mostrou sua capacidade de gerar danos políticos concretos

Bolsonaro insulta o bom senso e usa com maestria sua capacidade de desnortear qualquer um que pretenda travar uma discussão intelectualmente honesta. Em 2018 ele conseguiu, com essa tática, pegar de calças curtas muitos  jornalistas. Diante de tantos absurdos, alguns simplesmente se entregavam à escandalização do que ouviam, entregando, ao fim, a palavra final ao ex-capitão. Mas, claro. Acharam que ele fazia o serviço de auto-sabotagem por si só. Erraram feio.

Ontem, porém, não houve entrevista. Eis o segundo ponto. 

Jair Bolsonaro não foi entrevistado pelo Flow. Jair Bolsonaro conquistou a sua live dos sonhos – aquelas transmissões que ele faz religiosamente todas as quintas-feiras desde 2019. Foram mais de meio milhão de pessoas assistindo ao mesmo tempo o programa no YouTube. Em menos de 24 horas circulando,  o episódio já conta com mais de 7 milhões de visualizações. Um palco esplêndido de visibilidade pública para tocar todas as atrocidades que tradicionalmente toca às quintas-feiras: negacionismo científico, curandeirismos, relativismos pós-modernos, tergiversações, destilações preconceituosas (inclusive racistas), mentiras, falácias, ataques à democracia, teorias conspiratórias, golpismo. Tudo isso sobre um belo tapete vermelho estendido pelo Flow. Eis o terceiro ponto. 

Jair Bolsonaro não foi alvo de qualquer escrutínio típico de entrevista com um candidato à presidência da República. O Flow parece ter feito um bom combinado de escambo comercial e político para que as partes se favorecerem, respectivamente, em seus ramos de interesse e atuação. O candidato à reeleição tem material de sobra para editar e repercutir em suas redes, e o Flow conseguiu um alcance ímpar, que certamente gerará dividendos com anunciantes e com os esquemas de monetização das plataformas – que lucram fortunas com a desinformação. 

A descentralização da comunicação parecia, para muitos, um caminho alvissareiro para o fortalecimento da democracia. Afinal, indubitavelmente, ampliaria a participação política por meio do acesso à Esfera Pública e produziria (como produziu) uma diversidade profundamente inclusiva de novos atores e grupos antes alijados do debate público. 

Mas como nada é tão simples como costuma parecer, romantizou-se o valor da participação política pela quantidade ao invés da qualidade. Mais participação política não significa mais cidadania democrática, como já bem sublinhou o professor Wilson Gomes em um de seus tantos (e fundamentais) textos. Grupos profundamente coesos, hiper-engajados e ativos podem conquistar esplêndida participação política para atuar justamente contra a democracia. Eis a extrema-direita bolsonarista e golpista, para ficarmos em um exemplo local. 

Mas não só, como ensinou o Flow ontem. A falta de uma ética profissional, de uma deontologia, como a do jornalismo  apesar de todas as suas dimensões ficcionais e imperfeições – já mostrou sua capacidade de gerar danos políticos concretos. Danos mais vigorosos do que as próprias suspensões antidemocráticas das deontologias jornalísticas em episódios históricos expressivos da grande imprensa brasileira. 

Essa talvez tenha sido a maior lição do episódio de ontem.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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