Colunas

A política (nas redes) é a guerra por outros meios

Pode-se estranhar como os bolsonaristas são bombardeados por mensagens altamente repetitivas no Facebook, no WhatsApp e no Telegram. Mas nada ali é inútil

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Você, leitor, talvez já tenha ouvido o conhecido adágio da guerra como sendo a política conduzida por outros meios, atribuído ao general prussiano Carl von Clausewitz. Clausewitz é considerado um dos maiores teóricos das chamadas guerras de primeira geração, baseadas no combate direto e em táticas ordenadas em colunas e linhas. Duzentos anos depois, fala-se em guerras de quarta ou quinta geração, que seriam altamente tecnológicas, não-lineares, e confundiriam cada vez mais as fronteiras entre militares e civis, guerra e paz.

Com o avanço do poder das Big Tech sobre a internet, a partir da crise financeira de 2008, cresceram as publicações sobre como as novas mídias – de aplicativos de mensagens a redes sociais – vêm desempenhando um papel central, ainda que nem sempre direto ou consciente, em operações de desinformação que comporiam a chamada guerra híbrida. Há controvérsias sobre o grau de espontaneidade ou organização desses processos – em especial no caso de grupos sociais notoriamente fechados e difíceis de estudar, como os militares. Mas é possível abordar a questão de modo mais indireto.

Podemos nos perguntar, por exemplo, se (e como) as novas mídias introduzem vieses técnicos favoráveis ao tipo de política encampada por aqueles que afirmam o tempo todo estar em guerra: guerra cultural, guerra santa, guerra contra o comunismo, o globalismo, etc. 

Nessa perspectiva, boa parte da eficácia de estratégias de guerra híbrida está mais na infraestrutura técnica e no ambiente no qual eles atuam do que nos sujeitos individuais. É como se os algoritmos estivessem pré-formatados para, quando entrassem em interação com grandes volumes de certos tipos de usuários, se transformassem rapidamente em um campo binário de guerra.

As suspeitas com relação à atuação dos militares brasileiros em operações psicológicas não são infundadas. A questão é que, em um ambiente informacional já propício, não é preciso muito para ativar táticas de guerra como Blitzkriegs e pinças. Pela sua própria constituição histórica, os militares no mundo todo de fato têm uma consciência cibernética muito superior à de outros grupos sociais – com exceção talvez da própria indústria tech. Como mostra um artigo seminal do físico e historiador da ciência Peter Galison, as tecnologias cibernéticas modernas têm, desde seu nascimento, uma relação estreita com a lógica da guerra: uma visão do humano como inimigo. 

Em qualquer guerra, é preciso desumanizar o outro para que se possa exterminá-lo. Além de analogias com animais e monstros, comuns às guerras de primeira e segunda geração, há outras formas de desumanização, como a anonimização pela distância tecnológica (nas guerras de drones, por exemplo) e a visão do inimigo enquanto máquina. Esta última, orientou o trabalho do pai da cibernética, o matemático Norbert Wiener, com artilharia antiaérea durante a Segunda Guerra Mundial. O comportamento de pilotos e aviões eram concebidos de modo indistinto, como um híbrido de humano e máquina.

É importante notar que as três dimensões da desumanização da guerra coexistem, hoje, nos públicos bolsonaristas. Feministas são representadas por meio de símbolos de animalização (pelos, nudez, defecar ou urinar nas ruas). Bandidos, como vermes ou monstros, para quem a ressocialização é impossível. Por outro lado, a lacuna tecnológica entre as realidades on e off-line produz um efeito de distanciamento que potencializa comportamentos agressivos e ameaçadores por parte desses usuários. Nas multidões digitais formadas nas redes, indivíduos se sentem à vontade para falar e fazer coisas que não fariam sozinhos em situações face-a-face.

Finalmente, o bolsonarismo evidencia um processo mais profundo em que o hibridismo humano-máquina propiciado pelas novas mídias cibernéticas leva a um viés não apenas comportamental, mas estrutural, no sentido de uma lógica de guerra. O espaço-tempo da guerra é o do estado de exceção, e a temporalidade de crise permanente das redes – a interpelação ininterrupta dos usuários por eventos que demandam nossa atenção – nos insere em um ambiente desse tipo. Muitas vezes nos sentimos desconfortáveis, exaustos ou irreconhecíveis em nossas interações online. Já para a direita bolsonarista, que abraça abertamente uma ideologia da guerra, ambiente e comportamento se alinham com mais fluidez.

À primeira vista, podemos estranhar como os públicos bolsonaristas no Facebook, Telegram e em outras plataformas são bombardeados por uma quantidade enorme de mensagens altamente repetitivas. Mas nada ali é inútil pois, diferente das mídias pré-digitais, como os jornais ou a tevê, na internet o conteúdo É a infraestrutura. Embora a redundância das mensagens não traga nenhuma informação nova em termos de conteúdo, ela desempenha a função crucial de ocupar espaço naquela rede. Essa ocupação de espaço já é, em si, um resultado positivo da guerra de posições: um território conquistado. Essa atuação em dois níveis é, como defendi em outra coluna, uma lição que outras partes do espectro político ainda precisam absorver e rotinizar: a guerra (digital) como a política por outros meios.

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