Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Carolina Maria de Jesus: “Quem governa o Brasil não sabe o que é a aflição do pobre”

‘Além de escritora, Carolina foi também uma grande intelectual, cujo pensamento é essencial para compreendermos os abismos que nos cercam’

A escritora Carolina Maria de Jesus. Foto: Acervo UH/Folhapress
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Faço parte do grupo que pode ficar em casa durante a quarentena. Há mais de trinta dias atravesso o portão somente para ir à padaria e ao supermercado. Inicialmente, não foi fácil lidar com a “supressão” da vida. De repente, planos e desejos tiveram que ser adiados. Meus pais, que são idosos, e o meu irmão que é enfermeiro, fazem parte do grupo de risco. Tudo isso, somado à incerteza de quando a pandemia chegará ao fim, trouxe ansiedade, angústia e insônia.

Fiz o caminho de volta. Olhei para dentro. Encontrei paz, serenidade e resiliência na meditação e nas preces diárias. Quando medito, me sinto vestida e armada com as armas de São Jorge, que aniversariou na semana passada.

Ainda que eu tenha encontrado equilíbrio para fazer a travessia que o coronavírus nos impõe, sinto falta de muita coisa. Sinto falta de estar com as pessoas que amo, de poder programar a próxima viagem de férias, de andar pelas ruas sem maiores preocupações. Sinto falta do trabalho, de dançar forró no Bar da Nida, de tomar cerveja no Bar do Orlando. Sinto falta de ver o Galo, meu time do coração, jogar.

Em meio à falta, comemoro o fato de nesses dias de reclusão poder me dedicar aos estudos, à leitura e à escrita. Carolina Maria de Jesus tem sido uma grande companheira. Nascida em Sacramento, interior de Minas Gerais, Carolina frequentou a escola por apenas dois anos. Quarto de despejo: diário de uma favelada, sua obra mais conhecida, foi publicada em 1960. Sucesso de público, em uma semana, foram vendidos mais de 10 mil exemplares. O diário em que ela narrou a crueza da vida na antiga favela do Canindé, situada na região central de São Paulo, ganhou o mundo. Quarto de despejo foi traduzido para 16 idiomas.

Se a originalidade da obra impressionou multidões, o mesmo não se pode dizer da crítica. Apesar dos esforços da família, do crescente número de pesquisadores interessados na vida e na obra da escritora mineira, e do ativismo de militantes do Movimento Negro, passados 43 anos de sua morte, é possível afirmar que Carolina Maria de Jesus permanece sem ter o devido reconhecimento. Sessenta anos após o lançamento de Quarto de despejo, há ainda quem defenda que Carolina não era uma escritora. O racismo e o epistemicídio têm exercido papéis fundamentais no processo de depreciação e silenciamento do legado de Carolina Maria de Jesus.

O cânone acadêmico e literário ainda é reservado a uma “elite intelectual”, que nos dizeres do pesquisador Kabengele Munanga, é formada em grande medida por “machos brancos mortos”. Carolina sabia disso. Em seu diário, escreveu: “Os brancos têm mais possibilidades na vida do que o preto. Os pretos é sempre posto de lado”.

Grande homenageada da Feira Literária das Periferias (FLUP) deste ano, Carolina é pouca conhecida entre estudantes da educação básica e do ensino superior. Raramente ela aparece nos livros didáticos e também não é presença constante nos planos de aula do ensino superior. No ano passado, levei Quarto de despejo para minhas turmas dos cursos de Letras e Pedagogia. Em ambas, poucos eram os alunos que já tinham ouvido falar da escritora afro-brasileira.

Perdi as contas de quantas vezes li Quarto de despejo. Nessa leitura em meio à quarentena, tem me chamado a atenção a maneira como ela lia e interpretava a situação política, social e econômica do país no final dos anos de 1950. Tenho a sensação de que algumas passagens foram escritas ontem, hoje, agora.

Desse modo, me pergunto: se estivesse viva, o que Carolina diria a respeito do Brasil atual? Como não é possível saber, elaborei algumas perguntas como se estivesse entrevistando-a, de modo a evidenciar que além de escritora, Carolina foi também uma grande intelectual, cujo pensamento é essencial para compreendermos os abismos que nos cercam e amedrontam. As respostas foram retiradas de Quarto de despejo.

Luana Tolentino: Carolina, como tem sido a rotina da senhora nesses dias de quarentena?
Carolina de Jesus: “Todos têm um ideal. O meu é gostar de ler. (…) Enquanto escrevo, vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de fantasia para esquecer que estou na favela”.

LT: Em entrevista recente, o doutor Dráuzio Varella afirmou que um dos maiores desafios para o combate à covid-19 são as nossas desigualdades. Segundo o médico, a maior parte da população vive em condições precárias de existência, sem saneamento básico, no subemprego, em áreas onde não é possível fazer o isolamento recomendado pela OMS. É uma realidade que a senhora conhece de perto. Como a senhora vê essa situação?
CJ: “Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa. (…) Quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (…) Duro é o pão que comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado”.

LT: Para tentar amenizar as dificuldades econômicas provocadas pela pandemia, após aprovação da renda mínima pela Câmara e pelo Senado, o Governo Federal liberará durante três meses as quantias de R$ 600,00 e R$ 1200,00 para os grupos mais vulneráveis. As pessoas que têm direito ao benefício têm encontrado muitas dificuldades para realizar o cadastro e sacar o dinheiro. O que a senhora tem a dizer a esse respeito?
CJ:
“Quem deve dirigir [o país] é quem tem capacidade. Quem tem dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é a dor e a aflição do pobre. (…) Precisamos livrar o Brasil dos políticos açambarcadores”.

LT: A senhora testemunhou os acontecimentos que precederam ao golpe de 1964. De que maneira a senhora viu a participação do presidente da República na manifestação realizada em frente ao quartel do Exército, onde as pessoas pediam o AI-5 e a volta do regime militar?
CJ: “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia”.

LT: Em meio à crise econômica e sanitária, presenciamos também uma crise política, cujo capítulo mais recente foi a saída do então ministro Sérgio Moro do governo. É possível pensar em uma solução para esse cenário?
CJ
: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”.

LT: Em minhas entrevistas, sempre peço aos entrevistados que deixem uma mensagem aos leitores da Carta Capital. Esteja à vontade.
CJ: “A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro”.

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