Guilherme Boulos

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Coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Foi candidato à Presidência da República em 2018, pelo PSOL.

Opinião

Boulos: Por que fui aos protestos

Além da pandemia, enfrentamos a escalada autoritária de Bolsonaro. Mas o jogo começa a virar

Foto: Filipe Araujo Foto: Filipe Araujo
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O mundo enfrenta a maior crise sanitária do século. São centenas de milhares de mortos e milhões de contaminados pela Covid-19. Todos os esforços deveriam estar focados em defender a vida e combater o vírus. Nisso o Brasil vai muito mal. Um presidente insano. Um país sem ministro da Saúde há semanas. E com recorde de mortos todos os dias. Mas enquanto o vírus faz vítimas, aqui outro perigo também cresce: a escalada autoritária de Bolsonaro.

Há alguns meses, as praças do Brasil tornaram-se palco de agressões a enfermeiras, espancamento de jornalistas e de gente confessadamente armada acampando na Esplanada dos Ministérios. Bolsonaro estimulou e participou de manifestações em defesa do AI-5, do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Criou-se um clima pesado e violento. Por mais que todas as pesquisas mostrem a perda de apoio ao governo, os fanáticos bolsonaristas impuseram terror nas ruas.

A disputa das ruas não é secundária. Define o clima social e ajuda a alterar a correlação das forças políticas. Movidos por um clima de indignação, grupos de torcedores organizados, articulados sob a bandeira de “Somos Democracia”, tomaram as ruas em 31 de maio para dar um basta às agressões covardes e sinalizar que há resistência aos desmandos bolsonaristas. No domingo seguinte, somaram-se aos torcedores coletivos do movimento negro – expressando o levante antirracista mundial – e movimentos sociais da Frente Povo Sem Medo. As manifestações pela democracia e contra o racismo foram muito maiores, em todo o Brasil, do que os grupos que pediam intervenção militar. O jogo começou a virar. Finalmente, a maioria social se traduziu nas ruas.

As manifestações abriram uma polêmica na sociedade e na própria esquerda brasileira. Estamos em uma pandemia e defendemos o isolamento social como forma de combater a propagação do vírus. Denunciamos Bolsonaro pelas aglomerações que promoveu em Brasília. Estaríamos nos igualando a ele? Outros questionaram os riscos do bolsonarismo infiltrar gente nas manifestações e usar cenas de violência como pretexto para intervenções mais duras, como um estado de sítio ou uma Garantia de Lei e Ordem. São questionamentos legítimos. Vamos analisá-los.

Em primeiro lugar, ninguém gostaria de estar nas ruas neste momento. Gostaríamos de estar todos em casa, na quarentena, esperando o controle da pandemia. Convenhamos que esse não é o caso da maioria da população, impedida de seguir o isolamento por falta de condições econômicas ou por precariedade na situação de moradia. Milhões de brasileiros seguem pegando ônibus cheios todos os dias, por descaso e falta de políticas de proteção pelo Poder Público. Dito isso, é importante diferenciar tipos de manifestação a partir de seus cuidados sanitários.

Nas manifestações da extrema-direita, Bolsonaro foi várias vezes sem máscara, carregou crianças e estimulou o empurra-empurra. Só com muita má-fé para igualar isso com o que foi feito no Largo da Batata e em outras praças do País no último domingo. Lá havia mais de cem médicos e enfermeiros voluntários, distribuindo álcool em gel e orientando distanciamento, foram entregues 4 mil máscaras por coletivos de costureiras do MTST e a todo momento o carro de som alertava para a necessidade de distanciamento. Não é o ideal, evidentemente, mas não há comparação possível com a irresponsabilidade genocida de Bolsonaro.

Em segundo lugar, a questão da violência e dos pretextos para a ditadura. As manifestações foram pacíficas, em quase todo o Brasil, até policiais atacarem quem estava nos atos. Várias imagens são chocantes. Ficou claro para a sociedade a proposta das manifestações e a violência seletiva da polícia. Além disso, se olharmos a história, veremos que o autoritarismo nunca precisou exatamente que a esquerda lhes desse pretexto. São especialistas em produzir os próprios. Aliás, Bolsonaro tem avançado no autoritarismo sem que a esquerda dê qualquer “pretexto”.

A História tem esses momentos de encruzilhada, em que um fato pode mudar o destino da nação. Iniciativas da sociedade civil, abaixo-assinados, ações institucionais são importantes na luta democrática, mas não suficientes. Por isso, vejo muita legitimidade nas manifestações que se iniciaram com torcedores, pela democracia, e que estão sendo feitas com cuidados sanitários e com orientação de evitar violência.

Não podemos, no entanto, cair em ciladas num momento como este. A divisão no Brasil não está entre quem vai ou não para as ruas. A divisão é entre quem defende a democracia e é antirracista, de um lado, e os fascistas de outro. Cada um pode protestar à sua maneira. Nas janelas, nas redes ou nas ruas.

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