Economia

Bolsonaristas e liberais são irmãos siameses

Carta de banqueiros e economistas para Bolsonaro não questionam os efeitos genocidas das políticas de austeridade

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Nas últimas semanas o bolsonarismo parece ter despertado a preocupação com a maioria desalentada que sente na pele as agruras da pandemia. A reabilitação de Lula e o baque na popularidade do mandatário reverberou no discurso negacionista e anti-vacina (embora permaneça receitando remédio para piolho a título de “tratamento precoce”). Ao mesmo tempo, a falsa dicotomia entre economia e vida foi requentada. O lockdown, medida exitosa em conter a circulação do vírus em diversos municípios e evitar o colapso do sistema de saúde – Araraquara é o exemplo mais recente – afetaria a sobrevivência de quem precisa sair às ruas para trabalhar. Sem dúvida.

Trata-se, contudo, de uma meia-verdade, principalmente se considerarmos o colchão que o governo vem se negando a dar para quem precisa.

Evidentemente, a preocupação do bolsonarismo com os mais pobres é semelhante à dos economistas liberais encabeçados por Pérsio Arida, que publicaram recentemente um manifesto onde enfileiram seus descontentamentos com a maneira com que a pandemia vem sendo enfrentada. O teatro da caridade cristã encobre a prioridade máxima dos recém-convertidos à Madre Teresa: manter a acumulação capitalista nos níveis obscenos em que se encontra. Ou mesmo aumentá-la.

Persio Arida/Divulgação

Os efeitos do auxílio emergencial aprovado em 2020 mostram que a roda não precisa ser inventada. Arida e sua turma, porém, ignoram as profanações à sua fé ao invés de rebatê-las. Estabelecido em valores maiores do que Bolsonaro desejava, o auxílio aumentou a arrecadação do ICMS em níveis iguais ou superiores aos meses pré-pandemia, além de ter estimulado o consumo, segurado as pontas da economia e impedido uma catástrofe ainda maior. Explicitou, ainda, o tamanho do abismo em que nos encontramos: sete em cada dez dos seus beneficiários o tinham como única fonte de renda.

A roda é circular em qualquer lugar do mundo. Nos EUA, o Senado acaba de aprovar um pacto de U$ 1,9 trilhão para lidar com a pandemia. Entre seus benefícios estão o pagamento de um auxílio-desemprego e de um abono familiar. Em março de 2020, os valores foram um pouco menos discretos: 2,2 trilhões. O Reino Unido também seguiu esse caminho, liberando em 2021 o montante de U$ 6,2 bilhões só para ajudar empresas. Por que o Brasil não pode tomar medidas semelhantes?

“Não há dinheiro”, responderão Arida e os ortodoxos signatários de sua missiva. Arida é um liberal que, embora não se dê com Paulo Guedes, como bem descreveu a matéria da Revista Piauí, acende suas velas para o mesmo deus que o ministro bolsonarista. A bíblia do austericídio impõe a saúde das finanças públicas em favor dos credores internacionais e do mercado financeiro, mesmo que a custa de vidas. Mas será que realmente não há alternativa?

Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, o Brasil perde R$ 417 bilhões por ano em razão da sonegação fiscal. Tributar os 0,3% mais ricos geraria R$ 86,2 bilhões para estados e R$ 53 bilhões e para os municípios, diz um estudo da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e do Instituto Justiça Fiscal e Auditores Fiscais pela Democracia.

 

Taxar quem ostenta jatinhos, iates e helicópteros geraria uma receita de R$ 4,6 bilhões, ao passo que informações da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional apontam que 4.013 pessoas físicas e jurídicas proprietárias de terra deviam, em 2016, R$ 906 bilhões – quase um trilhão – ao fisco, uma dívida superior ao PIB de todos os estados brasileiros. De 2012 a 2017, nenhum centavo foi tributado dos R$ 9 bilhões amealhados pelos Setúbal, Villela e Moreira Salles, clãs que comandam o Itaú Unibanco.

Tudo isso ocorre em um momento de recessão e queda na renda dos mais pobres. Na medida em que miseráveis ficam ainda mais miseráveis, 42 bilionários brasileiros viram suas fortunas crescerem R$ 34 bilhões. E não é apenas a miséria da maioria e a renda e o patrimônio dos mais ricos que vêm aumentando no Brasil: de 2019 para 2020 o país ganhou 33 bilionários, segundo a Forbes. Enquanto isso, 40 milhões de pessoas se encontram hoje em situação de pobreza extrema , vivendo com a renda de R$ 89 por mês, conforme dados do Ministério da Cidadania.

Como dizer que se preocupa com os pobres e ao mesmo tempo ignorar que o caminho mais óbvio para lidar com a crise econômica é tributando a riqueza desse pessoal acima, a quem tanto Arida quanto Guedes servem como pitbulls teóricos e intelectuais? Não seria óbvia a hipótese de revogar, a partir desse manancial de recursos, a emenda constitucional do teto de gastos, que sem piedade drena recursos de serviços essenciais como o SUS?

A condução genocida da pandemia por Bolsonaro tem a austeridade fiscal como um de seus combustíveis. Nem o governo e tampouco os indignados economistas liderados por Arida, que esperaram 300 mil mortes para demonstrarem seu descontentamento, estão dispostos a questionar esse dogma, o mesmo dogma que vem ajudando a pilhar cadáveres a cada dia.

“Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma”, escreve Eduardo Galeano. “Eles jamais sujam as mãos (…) não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências dos seus atos”.

A turma de Pérsio Arida e o bolsonarismo hoje não se bicam, mas, sendo cabeças de um só corpo, andam inevitavelmente na mesma direção.

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