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Bolívia é uma faceta do autoritarismo líquido de nossos tempos

Trata-se de um mecanismo de dominação mais sutil, menos evidente, mas igualmente violento

Forças Armadas da Bolívia
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Embora sob a aparência de um golpe clássico, caracterizado pela ruptura institucional e comandado por militares, milicianos e pela elite econômica do país, as circunstâncias que levaram Evo Morales à renúncia podem ser encaradas como mais uma faceta do autoritarismo líquido dos nossos tempos.

Os discursos de seus opositores demonstram aparentes intenções de se buscar uma “saída democrática”. Dizem que é preciso agir “de modo democrático e constitucional” e que é necessário negar a “narrativa de golpe de Estado”. Além disso, ainda que o processo tenha sido sustentado pelas Forças Armadas e conduzido de forma extremamente violenta, com ameaças ao presidente e seus familiares, e forte repressão sobre seus apoiadores, todos aqueles que ora se empenham em ocupar o poder falam em um governo de transição que possa levar à realização de novas eleições.

Dadas essas características, conquanto seja ainda difícil prever o desfecho desse golpe cívico-militar-policial, é possível que prevaleça um modelo de autoritarismo que não se dá pela via de um governo de exceção clássico, ou seja, de uma ditadura, de um nazifascismo ou de um bonapartismo, mas pela produção intensa de medidas de exceção inseridas em um contexto aparentemente constitucional e democrático, a que chamo de autoritarismo líquido. 

Como tenho afirmado em meus estudos, o autoritarismo líquido é um mecanismo mais evoluído, pois, embora extremamente violento, é mais sutil, menos evidente. Maquiavel dizia, com muita correção, que a virtude do político é alcançar o poder e nele permanecer tanto quanto possível. Um sistema autoritário busca permanecer o máximo possível como tal no poder, e, na medida em que ele dificulta sua identificação como autoritário, mais tempo de permanência, em tese, ele tem. Essa dinâmica reflete bem o funcionamento desse novo modelo de autoritarismo, que se realiza por meio de medidas mais cirúrgicas, que não implicam a suspensão imediata e generalizada dos direitos de toda a sociedade. 

Esse modus operandi se dá em um ambiente no qual medidas de exceção convivem com decisões democráticas, o que faz com que se diluam, se liquefaçam, se disfarcem, tornando ainda mais difícil a sua identificação e, ao mesmo tempo, facilitando a construção de seus discursos de justificação. 

Em retrospecto: houve uma mudança considerável na forma e, por consequência, na natureza do autoritarismo do século XX para este do século XXI. Nos modelos típicos do passado, instituíam-se governos em que o estado de exceção se instaurava como medida de emergência, sempre amparado no discurso da defesa da segurança nacional e da sociedade. Sob o pretexto de se garantir a segurança e a paz social se realizava o combate ao inimigo, suspendendo seus direitos. 

Passeata na Bolívia contra a presidente interina. Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

A Segunda Guerra Mundial provocou uma revolução na forma como o homem ocidental passou a enxergar o mundo, uma vez que os dois grandes pilares da sociedade ocidental –  democracia e ciência – deixaram de garantir a adoção de medidas ou decisões éticas. A ciência, como se sabe, foi utilizada para o genocídio, enquanto a democracia, para acabar com a própria democracia. Assim, o Pós-Guerra pode ser entendido como uma “ressaca” da tragédia que foi o nazismo e a radicalização de algumas estruturas ocidentais.

No plano jurídico, o que sobrou foi a formulação de um sistema pautado em constituições rígidas, que não permitem mais que decisões políticas sejam tomadas de forma totalmente livre, obrigando os governantes a respeitar os direitos de liberdade, as liberdades públicas da cidadania e a realizar os direitos sociais. Isso não significa, no entanto, que o autoritarismo deixou de existir. O autoritarismo do século XXI dialoga com esse constitucionalismo e com essa visão do Pós-Guerra de democracia e garantia de direitos. Ele se instala sem que haja uma ruptura clara com a democracia. 

Na América Latina, onde essa modalidade de autoritarismo tem se expandido de forma mais intensa, observam-se duas grandes categorias predominantes de medidas de exceção: os inquéritos e processos penais de exceção e os impeachments constitucionais. Importante observar que, no Brasil, o processo penal de exceção migrou para a política para perseguir lideranças, em geral de esquerda. Foi o que ocorreu no famoso “Mensalão” e na condenação e prisão do ex-presidente Lula.

As práticas de autoritarismo líquido, com suas diferenças e semelhanças, não apenas derrubam governos eleitos, mas produzem líderes autoritários que chegam ao poder pela via democrática. No caso boliviano, sob a tese de ter havido fraude eleitoral na última eleição, instaurou-se um processo de tensionamento tão intenso que levou o presidente à renúncia. Assim, em breve, tudo indica, a América Latina terá mais uma liderança populista de extrema-direita eleita “democraticamente”.

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