Justiça

BBB fenômeno de audiência e a ilusão do abalo estrutural do racismo

Devemos nos questionar se a estrutura se movimenta quando estamos a pensar em um reality show da Globo

Tiago Leifert, o apresentador do programa. Foto: Reprodução
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“O desejo desestabiliza, subverte e torna a resistência possível, não podemos entretanto aceitar essas novas imagens acriticamente.” (HOOKS, Bell. Olhares Negros: raça e representação. Editora Elefante, ed.2019. p. 95).

O reality show Big Brother Brasil de 2020 foi considerado um fenômeno de audiência na história da Rede Globo. Seus números de fato impressionam, movimentaram como nunca a internet, entre milhões e milhões de postagens e seguidores para os perfis dos confinados, fãs famosos e digital influencers envolvidos.

Consta que o programa gerou 4,3 bilhões de impressões e comentários nas suas contas oficiais na internet e movimentou em torno de 88 milhões de pessoas em consumo de algum de seus conteúdos. Não por acaso a edição foi concebida como comemorativa de uma sequência de 20 anos de exibição do formato de entretenimento. E despontou com uma apresentação final muito aguardada envolvendo debate sobre representatividade com a vitória da disputa por uma mulher negra, a médica Thelma.

Curiosamente, entre números gigantescos, o chamado “Paredão”, momento de eliminação de confinados semanalmente, com maior número de votos foi a de disputa de três personalidades brancas – Mari, Manu e Prior – que alçou mais de 1,5 bilhão de votos na plataforma do Gshow da TV Globo.

A trajetória meteórica do reality nas redes sociais em meio à pandemia e a uma grave crise política, social e econômica tem que ser capaz também de produzir alguma inquietação.

Sem querer diminuir a empolgação e significado histórico da vitória de Thelma, eis que Angela Davis tem total razão na aclamada afirmação de que a vitória de uma mulher negra movimenta estruturas, é preciso, porém, estar atento às estratégias das estruturas que o contexto social permite analisar.

A final do reality acontece três dias após a fragmentação política do Governo Federal com sua falsa bandeira da luta anticorrupção, em razão da saída do ex-Ministro da Justiça que se tornou referência desse discurso falacioso. A ruptura não surpreendente, porquanto hipócrita, expõe o desenlace com qualquer discurso que seja, ainda que apenas em tese, moralmente defensável em público.

Entre o festejo público da vitória da representatividade negra com índices de audiência que em muito supera o número de entrevistados nas pesquisas de opinião que apontam para a manutenção de índices razoáveis de aprovação e popularidade do chefe do governo federal, em meio à pior pandemia da história mundial que começa a exibir as vísceras do acesso desigual do sistema de saúde no Brasil, bem como as suas imbricações perversas com a desigualdade social profunda que afeta massivamente a população negra, é preciso se questionar sobre os sentimentos escondidos na indiferença sobre as cenas de milhares de cadáveres sendo enterrados ao tempo que toleram silenciosamente as torcidas empolgadas da militância negra na internet em torno do reality.

Vladimir Safatle, em editorial publicado no El País, dá uma pista sobre o estado da arte quando fala em dinâmica suicidária em direção ao fascismo. E, como ele mesmo conclui essa dinâmica só será interrompida de forma brutal e “tal brutalidade não está na consciência dos atores políticos atuais”.

A inquietação passa por tentar entender o paradoxo da população que exalta a representatividade da mulher negra e as discussões feministas contemporâneas no palco da diversão capitalista do reality show e cujo projeto de edição era inegavelmente transpor das redes sociais a polarização política em torno dessas pautas visando ao entretenimento lucrativo com essa onda que movimenta o país desde a época das manifestações políticas de junho de 2013.

A contradição talvez indique a existência de um outro palco onde se movem todas as placas estruturais nada dispostas a permitir vitórias de thelmas, mas no sentido de promover a metabolização dos conflitos sociais.

Nesse ponto, parece revelador o ato falho do discurso do apresentador Tiago Leifert imediatamente antes de anunciar a campeã ao dizer à segunda colocada, a jovem branca Rafaela Kaliman, que ela foi a “porta-voz das mulheres, a camisa 10, a que organizou, a capitã, a influenciadora”, ao tempo que começou a se dirigir à vencedora, exaltando a sua representatividade na contramão das estatísticas e anunciou sua vitória como um acordo pré-definido: “o BBB só pode ser teu, tem que ser teu”.

bell hooks, citando Ron Scapp, refletiu que

liberais podem se orgulhar da sua habilidade de tolerar os outros, mas apenas depois que o outro foi redefinido como alguém pelo qual são capazes de se sensibilizar quanto às questões de crueldade e humilhação”.  Por isso, Hooks afirma que essa “redefinição é uma tentativa de se apropriar dos outros, de fazer o ato de consumo parecer um ato de reconhecimento” (HOOKS, bell. Olhares Negros: raça e representação. Editora Elefante, ed.2019. p. 51, 52).

Enquanto isso, nenhum sentimento efetivo caminha na direção da contenção da necropolítica e do darwinismo social, inspirados nos conceitos liberais clássicos e renovados pelo racismo científico que subsidiou a escravização em escala industrial nas Américas, e que se impõem pelo avanço a passos largos e em números constrangedores da pandemia do novo coronavírus sobre as comunidades periféricas, repletas de corpos negros como os de Thelma e Babu.

Aliás, talvez isso explique porque Babu, a personagem negra e masculina do reality mais aproximada dos estereótipos desses corpos, chegou longe, mas não levou a disputa. Sua raiva e conflitos psicológicos impostos pelas dinâmicas sociais teriam sido talvez um limite de tolerância. No plano político onde as grandes cartas são jogadas, a figura do homem público segue sendo de um homem branco, misógino, racista e autocentrado na sua autoridade.

Sobre isso também vale a pena refletir sobre a advertência de Hooks que se identifica com o fenômeno de audiência do BBB 2020, quando alerta que “massas de jovens insatisfeitos com o imperialismo dos Estados Unidos, com o desemprego, com a falta de oportunidades econômicas, sofrendo da doença pós-moderna da alienação, sem senso de origens e base, sem identidade redentora, podem ser manipulados por estratégias culturais que oferecem a Outridade como apaziguamento” (p. 72).

Muitos se apressaram em dizer que o reality de 2020 foi de grande utilidade social em meio à quarentena, seja para provocar debates políticos importantes de forma acessível e popular, seja por ter se tornado uma válvula de escape às restrições do isolamento social, mas a julgar pelos índices trágicos que a população negra vem experimentando desde sempre, na vida e na arte, e que prometem um genocídio silencioso e com poucos registros no curso da maior crise sanitária do mundo, a previsão possível, parafraseando novamente Hooks, é a de que o “racismo dos brancos, o imperialismo e a dominação machista vão prevalecer pelo consumo da coragem, pois devorando o Outro seguem garantindo poder e privilégio” (p.90).

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