Justiça

Barroso se esqueceu do papel que exerceu no golpe de 2016?

Marcha golpista contou com os esforços do ministro entusiasta do saqueamento de Temer e das aventuras da República de Curitiba

Dallagnol
O ex-ministro Sérgio Moro, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e o procurador Deltan Dallagnol. Foto: José Cruz/Agência Brasil O ex-ministro Sérgio Moro, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e o procurador Deltan Dallagnol. Foto: José Cruz/Agência Brasil
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Um dos assuntos da semana foi o reconhecimento por parte do ministro Luís Roberto Barroso de que o verdadeiro motivo para o afastamento da presidente Dilma Rousseff não foram as famosas pedaladas e demais matérias de fundo fiscal alegadas na época por seus oposicionistas. Foi, segundo escreveu em um artigo na edição de estreia da revista do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), a falta de sustentação política que a derrubou.

No mesmo texto, Barroso destaca a agenda liberal do sucessor de Dilma, Michel Temer, lamentando sua não concretização em virtude das acusações de corrupção contra seu governo.

Inexistindo crime de responsabilidade, só resta uma conclusão: o impeachment foi, na verdade, um golpe. Barroso já havia reconhecido em 2021 que o afastamento de Dilma não ocorrera pelos motivos alegados por Janaína Paschoal e sua turma. Ao mesmo tempo, também já afirmou que “impeachment não é golpe”, sugerindo que o processo que defenestrou a ex-mandatária teria sido legítimo. Nesse contexto, a observação mais recente de Barroso é sem dúvida um avanço, por mais que não se trate de uma novidade e que o próprio, certamente, já soubesse disso desde o início.

Barroso é um entusiasta da agenda liberal de Temer e, julgo dizer, também de Bolsonaro. São as mesmas, afinal. Enquanto hoje o governo avança com rapidez na privatização da Petrobras, foi o próprio Paulo Guedes que, mantendo boa parte da equipe de Temer, afirmou em entrevista à Globo News que pretendia dar continuidade acelerada ao seu programa econômico. Um e outro implementam a redução do Estado tão desejada por Barroso.

Tamanho entusiasmo se refletiu na sua atuação como juiz. A Emenda Constitucional 95, que impõe o teto de gastos a investimentos sociais até 2036 e garante a pilhagem de recursos públicos pelo mercado financeiro, foi alvo de sucessivos questionamentos judiciais ainda quando tramitava no Congresso Nacional. As ações ajuizadas no STF para questionar a constitucionalidade da medida, entretanto, caíram no colo do ministro Barroso, que terminou por rejeitar liminarmente uma série de mandados de segurança impetrados por parlamentares para barrar a tramitação do projeto cuja inconstitucionalidade chegou a ser reconhecida pelo próprio corpo técnico do Senado.

Luís Roberto Barroso, ministro do STF e do TSE

Na linha da redução de direitos sociais desejada por Barroso, o perverso efeito do teto de gastos na vida da população prescinde de maiores análises. Elas existem, porém, e já anunciavam o que viria caso a medida fosse aprovada. O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontou em 2016 que, durante sua vigência, a saúde pública pode perder até R$ 743 bilhões. A educação, por sua vez, perderia R$ 24 bilhões por ano, conforme estudo de consultoria da Câmara.

ntes da pandemia, pesquisadores da Fiocruz, Universidade Federal da Bahia, IPEA, Imperial College de Londres e Universidade de Stanford/EUA constataram os resultados da austeridade na morte de crianças: um aumento de 8,6% em 2030, ou, trocando em miúdos, vinte mil crianças mortas e cento e vinte quatro mil internadas. Nem a pandemia conteve a sanha austericida. Meio a maior crise sanitária de todos os tempos, o orçamento do SUS, dique que nos separa da barbárie, continuou perdendo dezenas de bilhões.

Barroso não descobriu a roda. Ninguém com um mínimo de boas intenções e ao menos dois neurônios acredita que o impeachment de Dilma ocorreu em razão das pedaladas.

Em rede nacional, seus próprios oposicionistas reconheceram o álibi fiscal encenado pelos acusadores. Também Michel Temer, por diversas vezes e sem muita vergonha. Em discurso proferido em 2016 no Conselho das Américas, Temer assumiu que o afastamento de Dilma ocorrera por resistir ao privatismo entreguista do programa Uma ponte para o futuro: “Há muitíssimos meses atrás, eu ainda vice-presidente, lançamos um documento chamado ‘Uma Ponte Para o Futuro’, porque nós verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo. E até sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento chamado ‘Ponte para o futuro’. E, como isso não deu certo, não houve adoção, instaurou-se um processo que culminou agora com a minha efetivação como presidência da República”.

Os incautos dirão que Barroso só agora soube dessa declaração.

Se o reconhecimento de Barroso de que houve um golpe contra Dilma não surpreende ninguém, há um misto de surpresa e cinismo quanto à afirmação de que Temer não concretizou sua agenda liberal em razão da corrupção em seu governo. O que foram, então, as aprovações da emenda do teto de gastos e da reforma trabalhista – defendida com deslumbre e desapego à realidade pelo ministro, que, em voto apaixonado, posicionou-se pela constitucionalidade da piora das condições de trabalho por ela trazida -, para ficar em apenas dois exemplos? É importante lembrar que as condições para a reforma da Previdência, aprovada no governo Bolsonaro, foram construídas a partir da gestão anterior, bem como a privatização da Eletrobras, a qual o Planalto vem dando continuidade.

Foi também para dar conta desses planos que Barroso se tornou uma referência do lavajatismo: ele não só votou a favor da prisão em segunda instância e da prisão de Lula, contribuindo para sua interdição eleitoral e para a vitória de Bolsonaro, como se posicionou de forma contrária à suspeição de Moro – o mesmo que, em entrevista recente, afirmou que comandou a operação Lava Jato.

A lógica é simples: estando Barroso comprometido com o projeto que objetiva fazer o Brasil voltar à condição primária-exportadora, e sendo a Lava Jato um instrumento importante para a inviabilização política e eleitoral de um projeto diverso ou que pode comprometer estes fins, era preciso garantir, a qualquer custo, a continuidade do que se iniciou há quase seis anos. Afinal, o PT não foi chutado do Planalto para voltar dois anos depois e pôr em risco as mudanças estruturais cuja permanência e aprofundamento contam com o empenho de Bolsonaro.

Com o golpe, Temer preparou o terreno e fincou a pedra fundamental para a destruição tocada por Bolsonaro, algo impossível sem a participação de Barroso, que, ao ratificar a reforma trabalhista, chancelar o desmonte do Estado e permitir a prisão de Lula e a inviabilização momentânea do projeto representado pelo ex-presidente, garantiu que os tratores da Ponte para o futuro passassem por cima do estado de bem-estar social brasileiro sem maiores problemas. Hoje, temos uma população enlutada, desempregada, faminta e com poucas perspectivas de melhorar sua vida.

Barroso pode até se esquecer do seu papel no golpe e de sua responsabilidade na rapina que veio depois. Nós não.

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