Daniel Dourado

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Médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

Opinião

Autonomia médica tem limite

Afirmar que os médicos têm autonomia para prescrever tratamento precoce para Covid-19 é desvirtuar o sentido da autonomia médica

O presidente Jair Bolsonaro exalta a cloroquina. Foto: AFP
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Ao discursar na Assembleia Geral da ONU deste ano, Jair Bolsonaro indiretamente assumiu a culpa pela criminosa gestão conduzida pelo governo federal durante crise sanitária. “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina”.

Repetindo uma de suas falácias preferidas, ele resumiu nessa frase a origem de um dos principais problemas do Brasil no período pandêmico.

Autonomia médica é o direito que os médicos têm de indicar os procedimentos adequados a cada paciente, observando as práticas cientificamente reconhecidas e respeitando a lei. Essa definição é do Código de Ética Médica, norma do Conselho Federal de Medicina que regulamenta o exercício da profissão. Nesse sentido, os médicos não podem sofrer limitações na sua liberdade de escolher – dentre os meios cientificamente reconhecidos – aqueles que considerar melhores para diagnóstico e tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

Bolsonaro admitiu diante da comunidade internacional que incentivou uma prática que subverte a autonomia médica em função dos seus interesses políticos

Portanto, a autonomia dos médicos não dá aos profissionais a liberdade para adotar qualquer conduta que quiserem. Ela está limitada, na origem, pelo dever de buscar a alternativa mais benéfica ao paciente e pela autonomia do paciente para decidir livremente. E são as evidências científicas que dão o parâmetro do que pode ou não fazer bem aos pacientes. Ou seja, a ética médica está baseada na relação médico-paciente, mas também na ciência.

Afirmar que os médicos têm autonomia para prescrever tratamento precoce para Covid-19 é desvirtuar o sentido da autonomia médica. Como a ciência já demonstrou que os medicamentos usados no chamado kit-Covid não funcionam, eles deixam de fazer parte do campo de escolha dos médicos em proveito dos pacientes com essa doença. Não existe autonomia para escolher um tratamento comprovadamente ineficaz.

Então, Bolsonaro admitiu diante da comunidade internacional que incentivou uma prática que subverte a autonomia médica em função dos seus interesses políticos. Nós brasileiros já sabemos que a insistência no tal tratamento precoce foi uma estratégia bolsonarista para iludir a população com uma falsa sensação de segurança e boicotar as medidas sanitárias de controle da pandemia, a pretexto de manter a atividade econômica. Sabemos também dos trágicos resultados disso.

O CFM poderia ter agido para minimizar os danos sofridos pela população. O órgão regulador da profissão médica é uma autarquia federal que deve atuar em prol da sociedade e não poderia ter se omitido. Se não chegou a recomendar diretamente o enganoso tratamento precoce – como Bolsonaro deliberadamente dá a entender – a atual diretoria do CFM tampouco se preocupou em desmentir as declarações o presidente da República.

Pelo contrário, o presidente do CFM fez questão de colocar em dúvida as robustas evidências científicas contrárias às drogas do chamado kit-Covid em todas as oportunidades que teve. E continua até hoje se apoiando num parecer de abril de 2020 – assinado por ele mesmo – que, no começo da pandemia, reconheceu o uso off label de medicamentos contra a Covid-19. Mas ignora que, desde então, muito conhecimento científico foi produzido e se recusa a mudar esse parecer. Quantos médicos de boa-fé foram induzidos por essa postura? Quantos pacientes foram vítimas dessa inaceitável omissão do CFM?

Os conselhos regionais e o próprio CFM terão ainda que lidar com as graves denúncias contra hospitais e planos de saúde que teriam coagido médicos a aplicarem protocolos de tratamento com esses medicamentos cientificamente reconhecidos como sem eficácia, o que é expressamente vedado pela regulamentação da profissão. A subordinação jurídica própria da relação de emprego – e é importante que esses médicos se reconheçam como trabalhadores que são – não deve se confundir com necessária independência técnica na prática da medicina.

A autonomia médica é princípio fundamental da atividade profissional, mas não pode ser usada como escudo para proteger aqueles que atuam como cúmplices de um governo que trabalha pela propagação de uma doença que já matou 600 mil brasileiros.

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