Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

Até que ponto se deve exigir dos atletas tantas ‘metas’?

Os trabalhadores comuns também estão submetidos a essa perversidade neoliberal, escreve Afonsinho

Foto: Lionel Bonaventure/AFP
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Pode ser que algum leitor tenha estranhado o fato de falarmos tão pouco de assuntos relacionados à política por estes dias. Está cada vez mais evidente o resultado da desastrada aventura militar a que fomos arrastados. Nessa areia movediça, em que todos se afundam um pouco mais a cada dia, não sobra pedra sobre pedra das justificativas de quem apoiou essa malfadada experiência. Acordos com o “Centrão”, denúncias de corrupção… O que mais mantém a fé dos apoiadores do ex-capitão?

Os Jogos de Tóquio, com a sua profusão de disputas acaloradas no auge do nosso inverno, nos ajuda a atravessar essa tempestade. Com um olho no padre e outro na missa, acompanho os desdobramentos políticos com apreensão, ao mesmo tempo que me deslumbro com os acontecimentos olímpicos. Entre medalhas e festejos, derrotas decepcionantes, principalmente dos favoritos que não confirmam as expectativas criadas em torno do maior espetáculo esportivo, quase sempre de quatro em quatro anos. Desta vez, atrasado pela trágica pandemia.

Além das disputas emocionantes, algumas manifestações chamam a atenção pelas suas implicações no desempenho dos envolvidos. Depois de uma partida extenuante, a campeoníssima do tênis Naomi Osaka preferiu não participar da entrevista coletiva. “Vou cuidar de mim mentalmente”, justificou a atleta japonesa. Outra destacada campeã, desta vez na esgrima, a brasileira Nathalie Moellhausen fez um longo desabafo, dizendo que já se sentiu “julgada, descredibilizada e desamparada”. Ainda assim, acrescentou ela, “sempre falo que a única adversária perigosa sou eu mesma”.

O aspecto emocional é sempre um quesito fundamental para uma boa performance em qualquer atividade, mais ainda numa disputa individual. Coincidentemente, as duas não foram bem em suas “provas” iniciais.
São tão estreitos os limites das disputas quando se chega ao nível olímpico, que nunca se sabe. O caso da ginasta americana Simone Biles, uma das primeiríssimas estrelas desta Olimpíada, é bastante representativo. No momento de sua heroica apresentação frustrada, era visível a diferença de sua aparência em comparação àquela dos seus momentos gloriosos. É preciso muita “cuca” para viver esse momento e sair ilesa. Solidariedade.

Biles também se manifestou corajosamente: “Há vida além da ginástica”. Entendo a sua angústia. É sempre uma mistura de expectativa e cobrança, a desencadear ansiedade, depressão e outros transtornos mentais. O problema não se restringe aos atletas, está presente em qualquer atividade laboral. A pressão por resultados merece uma análise mais aprofundada. Até que ponto se deve exigir tantas “metas”, às quais também estão submetidos os trabalhadores comuns nessa perversidade neoliberal?

Em tese, quanto mais cedo o desportista inicia sua carreira, melhor saberá lidar com isso tudo. Mas, hoje em dia, com a supervalorização do esporte, crianças são submetidas a um nível de exigências que podem levar à saturação precoce ou causar estresses com consequências danosas para o seu futuro, dentro ou fora do esporte.

Talvez pelo interesse despertado pela Olimpíada, há poucos dias surgiram reportagens abordando a questão. Crianças e adolescentes são submetidos a barbaridades de arrepiar por agenciadores de talentos. Imagino que modelos e artistas devam passar pelo mesmo suplício. Tenho em casa uma cartilha elaborada exatamente com essa preocupação pela equipe com a qual trabalhei, junto aos chamados à época “meninos de rua”, uma situação gravíssima.

Melhor falar das vitórias, das glórias, motivos de superação de todas essas “brabeiras”. O Brasil encontrou nos Jogos de Tóquio um novo xodó, a graciosa Rayssa, que traça o melhor caminho para o esporte, com alegria, razão de viver. Mantenha–se a boa orientação que tem tido até agora. Melhor de tudo é a simplicidade de quem pratica a modalidade estreante nas Olimpíadas, o popular “andar” de skate.

O surfista Ítalo Ferreira, com sua ­bela história de vida, deu uma cambalhota ao sair do pódio e ainda declarou alegremente: “Minha melhor manobra”. A mais valiosa medalha brasileira, no entanto, foi adiar as comemorações por conta das aglomerações.

A nota triste da Olimpíada é aquela dos estádios vazios, abrigando tamanhos esforços sem a vibração dos torcedores ausentes. Chocante pensar em tudo que foi dispendido, principalmente em termos de ideais esportivos. E para não deixar escapar o nosso futebol, ando nas nuvens ao ver a atuação da zagueira brasileira Rafaelle, a mais completa jogadora que vi até hoje. É Nilton Santos de saia.

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