Opinião

As raízes do colonialismo se alastram na cultura dos dominados

‘A extrema-direita aproveitava-se da nossa ignorância para difundir suas falácias político-raciais’

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“A sabedoria é sem limites, e quanto mais alguém se aproximar dela, mais importante ela se tornará para sua vida. Todo indivíduo pode sempre aprimorar-se.”
Leon Tolstoi.

Tenho por hábito não jogar matérias – que julgo importantes – sem ler, o que gera um certo passivo em termos de material acumulado, que a aposentadoria busca remediar. Permite, porém, não apenas identificar bases para a interpretação do presente, mas também distinguir o efêmero do perene.

Nesse sentido, encontrei um caderno “Mais”, da Folha de S.Paulo, de domingo, 20-10-2002. Nele, um artigo do historiador inglês Kenneth Maxwell, intitulado “O Brasil Transatlântico”.

A analogia entre os mecanismos utilizados pelas potências coloniais do século XVI com o que ocorre atualmente no Brasil – em processo de recolonização – é simétrica: “A partir de 1559 houve um entendimento tácito entre a França e a Espanha de que, além de uma linha a oeste das ilhas Canárias e ao sul do trópico de Câncer, as potências europeias não eram necessariamente restritas pelos padrões de conduta que governavam suas relações na Europa. Como se dizia, ‘não haveria paz além da linha. A vantagem do acordo era que os europeus podiam se atacar reciprocamente no Novo Mundo, enquanto ficavam livres da necessidade de declarar guerra entre si na Europa.”

Com efeito, as diferenças entre os padrões civilizatórios entre o centro e a periferia – na qual reinseriram o Brasil – são igualmente evidentes na atualidade: os países do Norte planejaram o golpe de 2016; legitimaram-no, por meio do lawfare e dele fruem imensas vantagens, no pré-sal, na destruição das indústrias naval e aeronáutica, na exploração predatória da Amazônia, na pilhagem das riquezas energéticas e minerais do País – como um todo, além da supressão da política externa brasileira, antes promotora do desenvolvimento, da justiça e da paz.

Como se pode ver pelo brilhante artigo, as raízes do colonialismo são profundas e se alastram na cultura dos dominados, sob diversas maneiras e dissimulações.

Um engano frequente é de que os estados do Sul, majoritariamente conservadores, na atualidade, teriam maior desenvolvimento graças à colonização europeia. Santa Catarina, onde o genocida teve a maior votação proporcional e onde se encontra a sede da Havan, seria o exemplo mais saliente, tendo em vista a composição étnica mais marcadamente europeia.

Ora, no referido caderno “Mais”, encontra-se artigo do editor-assistente de Ciência, Claudio Angelo, em que esplendidamente analisou o volume “A Espinha Dorsal da História”, então recém-editado pela Editora da Universidade de Cambridge.

O editor aclarou sobre o citado volume: “…estudo realizado durante mais de uma década, que envolveu 35 pesquisadores – três deles brasileiros – e acaba de ser publicado nos Estados Unidos e na Europa…o grupo de antropólogos, médicos, historiadores e economistas, coordenado por Richard Stekel, da Universidade de Ohio, e Jerome Rose, da Universidade de Arkansas (ambas dos EUA), apresenta a maior base de dados já construída sobre a saúde da população do continente americano. Foram analisados cerca de 12.500 esqueletos, datados entre 4.000 a.c. e o começo do século 20. O levantamento buscou avaliar, nos ossos, indicadores de saúde como estatura média, estado dos dentes, grau de nutrição e doenças crônicas.”

Para minha imensa surpresa – e imagino também dos demais brasileiros, não apenas catarinenses – vejam o que concluiu aquele inquérito multidisciplinar, nas palavras do editor-assistente de Ciência: “Os povos que habitaram o litoral de Santa Catarina há mil anos tiveram a melhor qualidade de vida de toda a população das Américas nos últimos sete milênios, incluindo aí descendentes de europeus que viveram nos séculos 18 e 19 na América do Norte.”

Segundo o artigo, os pesquisadores concluíram que isso se deveria ao ambiente costeiro, rico em peixe (fonte de proteína animal) e ao hábito de caça e coleta…”Com a agricultura, você perde a diversidade de alimentos”, disse Walter Neves, da Universidade de São Paulo, que realizara o estudo em Santa Catarina, em colaboração com a também brasileira Verônica Wesolowski. Demais, o estudo esclarece: “…o consumo de carboidratos, presentes especialmente em cereais como o milho, eleva a incidência de cáries…’E nós mostramos que esses grupos, apesar de serem ceramistas não eram horticultores’ – a presença de cerâmica costuma ser associada à agricultura na América do Sul.”

Mais uma vez, a extrema-direita aproveitava-se da nossa ignorância para difundir suas falácias político-raciais. A ciência e o conhecimento, porém não se deixam vencer e novamente as trevas iluminam.

Da Santa Catarina e do Rio Grande do Sul anti-imperialistas, busquemos as palavras de Bento Gonçalves, o líder da Revolução Farroupilha, em “Anita Garibaldi – a estrela da tempestade”, de Heloisa Prieto (Editora Rocco), na carta que enviara ao imperador: “E em nome do Rio Grande eu lhe digo que nesta Província extrema, afastada dos corrilhos e conveniências da Corte, dos rapapés e salamaleques, não toleraremos imposições humilhantes, nem insultos de qualquer espécie.”

Mais pertinentes ainda, as palavras da própria Anita Garibaldi, em carta à irmã, reproduzida naquele livro, a respeito da oligarquia detratora de Laguna, as quais amoldam-se perfeitamente às congêneres brasileiras, infensas à vontade popular e às suas manifestações: “…condenações dos que não têm simpatia pela causa revolucionária, quer dizer, aqueles que têm medo de perder seus privilégios, aqueles que já são ricos à custa de nós, os pobres.”

Se nos roubam o pão, empeçamos que nos levem também as ideias e os sonhos, para que, ao final, também o pão recuperemos.

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