Glenn Greenwald

As duas faces da saída do armário de Eduardo Leite

A felicidade que sinto pessoalmente pelo governador não faz de sua declaração corajosa ou inspiradora

(Foto: George Gianni/PSDB/Divulgação)
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Eduardo Leite foi eleito governador do Rio Grande do Sul em 2018, aos 33 anos. No segundo turno, ao se ver frente a uma candidatura competitiva do MDB, o ambicioso tucano que se candidatou a um cargo público pela primeira vez aos 19 se tornou um apoiador do presidenciável Jair Bolsonaro, o político mais anti-LGBT do mundo democrático.

Ao anunciar seu endosso a Bolsonaro em 2018, Leite foi categórico ao dizer que o apoio se dava não por conveniência política, mas por convicção. A três dias do segundo turno, ele tuitou: “A posição que assumimos, no segundo turno, não é por conveniência e sim pelo que acredito. Temos algumas ressalvas com posições antigas que o @jairbolsonaro tomou, mas entendo que é a melhor alternativa nesse momento.” 

Seja qual fosse o motivo, apoiar Bolsonaro lhe trouxe claras vantagens políticas: no Rio Grande do Sul, o ex-capitão recebeu 46% dos votos no primeiro turno e 55% no segundo. É razoável concluir que vários se não a maior parte dos votos que deram à Leite uma vantagem de sete pontos percentuais sobre seu adversário no segundo turno são resultantes do apoio entusiástico dado a Bolsonaro.

Porém, no que se refere a política, 2018 já é passado remoto, o que leva o jovem governador a ajustar sua estratégia. Se naquele ano Bolsonaro era um fenômeno político imparável, hoje é um presidente impopular. A pandemia e os incontáveis escândalos de seu governo e de sua família o deixaram com poucos aliados fora de seu núcleo-duro. Há poucos benefícios   e muitas desvantagens   em se associar à figura de Bolsonaro: Marcelo Crivella é o maior exemplo, mas há inúmeros candidatos Brasil afora endossados pelo presidente e derrotados nas urnas. No ambiente político atual, ser visto ao lado de Bolsonaro é perigo. Se afastar dele, vantagem. É o que Leite está tentando fazer.

Tudo isso é crucial para se compreender o contexto da entrevista de Eduardo Leite a Pedro Bial, na qual se declarou publicamente gay. É igualmente importante o fato que Leite pretende concorrer à presidência em 2022, contra Bolsonaro. É preciso ser muito ingênuo para ignorar os cálculos e as ambições políticas quando se avalia seus movimentos.

Do ponto de vista político, a declaração pública de Leite me parece mais oportunista do que baseada em convicções. Oportunismo não é a mesma coisa que coragem: é o oposto

Para compreender as nuances políticas da declaração de Leite, é fundamental separar o pessoal do político. Sempre que uma pessoa LGBT consegue sair do armário e viver autêntica e abertamente, isso deve ser tratado como um triunfo e é motivo de comemoração. É ainda mais importante para uma pessoa como Leite, que vive numa região conservadora de um país conservador, onde o sentimento anti-LGBT vem sendo fomentado e explorado pelo bolsonarismo.

Ainda que a orientação sexual de Leite fosse um segredo-aberto entre todos os brasileiros LGBT com quem convivo, e que mesmo os bolsonaristas mais repugnantes como Roberto Jefferson já usassem isso contra ele, o fato de uma pessoa de sua estatura sair do armário e se declarar orgulhoso continua sendo importantíssimo. Qualquer pessoa decente fica feliz por ele e torce sinceramente para que ele encontre realização e plenitude agora que pode viver fora do armário. 

Ver um país como o Brasil ter seu primeiro governador abertamente gay na sua história e ver um ser humano poder viver sua vida de forma autêntica depois de 36 anos no armário suscita emoções fortes na maioria de nós. Como um homem gay que saiu do armário no auge da atmosfera opressiva e assustadora dos anos Reagan, da Moral Majority e da epidemia de AIDS, eu sinto essas emoções no meu âmago. Como parte de um casal gay conhecido que sofreu ataques homofóbicos intensos e cheios de ódio não só de pessoas associadas ao bolsonarismo mas do próprio presidente, eu entendo bem as dificuldades de ser abertamente gay no Brasil de Bolsonaro.

Muitos dos políticos que eu admiro e respeito no Rio Grande do Sul as deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) é Luciana Genro (PSOL-RS), a ex-candidata a vice- presidente Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) exaltaram o anúncio de Eduardo Leite como um ato de coragem e nobreza. Eu entendo esses sentimentos, mas não compartilho totalmente deles. 

A felicidade que sinto pessoalmente por Leite não faz de sua declaração corajosa ou inspiradora. É importante separar essa declaração em suas duas dimensões distintas. A primeira é a pessoal, na qual não sinto nada além de felicidade. A segunda é política, na qual avalio a declaração de Leite não do ponto de vista de uma pessoa que sai do armário, mas de um pré-candidato que se movimenta no xadrez eleitoral. Nessa dimensão, é inevitável enxergar o oportunismo em explorar a causa LGBT. Por que é que Leite, depois de uma longa carreira política e adesão entusiasmada ao ferozmente homofóbico Bolsonaro, finalmente decidiu, aos 36 anos, se declarar gay? 

É difícil compreender nossas próprias motivações com clareza, e ainda mais a de outras pessoas. Por isso, não vou especular acerca das “verdadeiras” intenções de Leite. Mas o que se sabe é o seguinte: em 2018, era politicamente benéfico para Leite ficar calado e subir no bonde do bolsonarismo. Em 2021 é politicamente benéfico fazer o que ele fez ontem: repudiar Bolsonaro e se dizer um  “governador gay, não um gay governador.”

Todo e qualquer político que queira se candidatar a presidente em 2022 e não se chame Luiz Inácio ou Jair sabe que só existe um caminho possível para chegar competitivo nessa disputa: se tornar a “terceira via”, unindo a chamada centro-direita e a chamada centro-esquerda. Como já escrevi nesta CartaCapital, ainda que não esteja claro que essa estratégia seja mesmo viável, Ciro Gomes é hoje a pessoa mais bem posicionada para ocupar esse espaço.

Mas, ao contrário de Ciro, Leite tem sérias dificuldades em se posicionar como o candidato da “terceira via”. Porque a centro-esquerda confiaria nele? Para além da defesa do neoliberalismo e do regime de austeridade, Leite apoiou abertamente Bolsonaro não há vinte anos atrás, mas há menos de três anos! Não se absteve ou ficou neutro, é sim ativamente declarou apoio ao político que se notabilizou por sua visão de mundo absurdamente homofóbica. Não era difícil enxergar o que Bolsonaro se tornaria, e ainda assim Leite foi a público pedir aos brasileiros que votassem em Bolsonaro e não em Fernando Haddad para presidente. Porque qualquer pessoa além dos direitistas convictos apoiariam alguém que fez isso?

Ao declarar publicamente que é parte da comunidade LGBT ainda mais numa entrevista com o popularíssimo Pedro Bial era garantido que Leite geraria sentimentos positivos entre a chamada centro-esquerda, tornando-o mais simpático aos olhos desses eleitores. Segundo a Veja, Leite se tornou, de um dia pro outro, “o político mais buscado no Google no Brasil”.

Quem, na centro-esquerda, vai ser contra o primeiro governador abertamente gay na história do Brasil? Especialmente um governador que se declara assim durante num estado conservador. É natural que as pessoas fiquem felizes. E é razoável concluir que Leite esperava essa reação.

É claro que é politicamente arriscado se declarar abertamente gay. Mas, se considerarmos que Bolsonaro tem o comando absoluto do eleitorado homofóbico e que é urgente para Leite aumentar sua penetração entre os setores progressistas e de centro-esquerda, essa não foi uma escolha complexa do ponto de vista político.

Do ponto de vista político, a declaração pública de Leite me parece mais oportunista do que baseada em convicções. Isso fica ainda mais claro quando lembramos da predileção de Leite por cálculos políticos, como mostrou seu endosso a Bolsonaro em 2018. Oportunismo não é sinônimo coragem: é o oposto. Não podemos deixar a nossa felicidade genuína por Leite como pessoa elevá-lo politicamente. Especialmente quando lembramos do que ele fez em 2018, quando o destino do Brasil estava em jogo.

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