Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Alguma coisa acontece dentro do ônibus Lapa-Paraíso

Sobe gente, desce gente. Todos com celulares nas mãos. Uns passam pelo Instagram, outros leem mensagens de bom dia, o Senhor esteja convosco

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Eram oito horas da manhã, em ponto, quando a mensagem chegou pelo celular de uma ilustre passageira, sentada ao lado de um pintor. Deveria ser pintor porque usava um macacão todo respingado de tinta e tinha uma lata de Coralit entre as pernas.

Ela tirou o celular de uma bolsa vermelha com fivelas douradas e ouviu em viva-voz, na tonalidade máxima:

– Tô ligando pra avisar que a dona de hoje não é igual a de ontem. Essa de hoje é um pé no saco!

Clique. Ela desligou e enfiou o celular de volta pra bolsa. Ninguém riu, ninguém tossiu, todos fizeram cara de pastel. Os que cochilavam continuaram cochilando, os que jogavam paciência continuaram jogando paciência, os que olhavam pra fora, continuaram olhando.

Um boy, sentado ao lado do trocador, perguntou:

– Mano, onde você comprou esse seu tênis?

– Em Pirituba.

– Maneiro, nunca tinha visto dessa cor, cinzão!

Era um All Star novinho, cinza chumbo.

De pé, espio no celular da mocinha sentada, a mensagem que acabou de chegar:

– Cadê você?

Ela respondeu rapidinho:

– No ônibus!

Uma senhora entra meio aflita e pergunta para o motorista:

– Passa perto do metrô Marechal? O motorista fez que sim com a cabeça, ela pediu para avisá-la quando chegar, pegou o telefone e ligou:

-Mãe, estou no ônibus, indo pro metrô Marechal. Vou passar na farmácia e vou praí.

Não, mãe. Aqui não tem Drogajato. Aqui em São Paulo só tem Drogasil.

Ela desligou o celular e comentou baixinho com o motorista:

– É um remédio pra dor muscular.

O ônibus segue, uma moça incomodada com o sol cobre o rosto com uma bolsa preta de pano do I Simpósio de Ecologia e Conservação do Semiárido. Uma outra abre uma mochila da Fjällraven, tira um batom rosa e retoca os lábios. Um senhor cochila, quase deixando cair um imenso envelope do Laboratório Lavoisier, exame de imagem certamente.

O ônibus passa em alta velocidade, onde moradores de rua ainda estão enrolados em seus cobertores, ao lado de seus cachorros, debaixo do viaduto que os protege.

Ouço um papo entre duas senhoras, perto da porta.

– Tem dois dias que não dou mais comida pra ele. Agora é só ração. Acredita que ficou com raiva de mim? Nem olha na minha cara.

Fico observando o olhar de cada um que passa pela roleta. Alguns cumprimentam o trocador, outros fazem um sinal com a cabeça, outros passam batido. Mas todos observam quanto ainda resta de saldo no cartão que a tela ao lado anuncia. O olhar de espanto maior são os daqueles cujos saldos estão no fim. E o mês, ainda não.

Perto do parque da água branca, uma moça faz sinal pro motorista, parado no ponto. Ele espera ela chegar, abre novamente a porta e ela entra, meio esbaforida.

– Dá pra esperar um minutinho só, até minha filha entrar na escola? Ela olha aflita e respira aliviada:

– Pronto! Entrou!

Ela havia deixado a filha na porta da escola, mas não queria perder o ônibus. Sentou-se no primeiro banco, ao lado de uma outra passageira e comentou, pra ela e pro motorista:

– Mãe é foda!

Sobe gente, desce gente. Todos com os seus celulares nas mãos, ligados. Uns passam rapidamente pelo Instagram, outros leem mensagens de Bom dia, o Senhor esteja convosco, alguns cintilantes, emoldurados por rosas cor de rosa.

Ao meu lado uma senhora vê, uma, duas, três vezes, um vídeo em search, tipo GIF, tutorial ensinando a fazer um hambúrguer com alface tomate, pepino, maionese, carne moída e duas fatias de bacon.

De repente, o ônibus estanca num engarrafamento e a moça grudada na porta pergunta:

– Aqui é o Paraíso?

Vários passageiros respondem, ao mesmo tempo, que sim.

Ela fala alto:

– Motorista, pode abrir a porta pra mim? Eu vou descer.

O motorista da uma olhada pra trás e abre a porta. A moça desce rapidamente e segue pela calçada, rumo ao Paraíso.

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