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A xenofobia e a discriminação escondem-se sob a capa do nacionalismo

As palavras talvez pareçam fortes, mas o que se passa no discurso político ocidental é o regresso do racismo

Bolsonaro e Trump na Casa Branca (Foto: AFP)
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Nos Estados Unidos, na base da sua Estátua da Liberdade, está gravado o belíssimo poema de Emma Lazarus: “Mandai-me esses, os sem abrigo, os arremessados pela tempestades, pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado”. Hoje, o seu presidente faz um comício e convida uma congressista, sua adversária política, a voltar para o seu país. A multidão faz coro (“Mandem-na para casa”). 

Na Itália, país com milhares de migrantes espalhados pelo mundo, o ministro Mateo Salvini exige saber quantos ciganos vivem no território com o intuito de expulsar os que lá estão de forma ilegal: “Infelizmente, temos de ficar com os ciganos italianos porque não os podemos expulsar”. 

Em Portugal, uma historiadora afirma que os africanos e os ciganos não fazem parte da entidade civilizacional e cultural que dá pelo nome de cristandade: “Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”. Essa mesma declaração diz no seu artigo primeiro: “Todos os homens nascem livres e iguais em direitos”.    

Na verdade, a questão não é de agora. Há muito que as políticas europeia e estadunidense vivem reféns do discurso da extrema-direita e escorregam lentamente para uma espécie de síndrome política da imigração. Tudo começa com a aceitação passiva – pela esquerda e pela direita – de que “a imigração é um problema” ou que “os imigrantes representam um problema”. A partir daqui, qualquer problema social, seja ele o desemprego, seja a habitação ou a segurança pública, pode ser transformado num problema de imigração e abrir espaços e oportunidades para os profissionais da política da catástrofe e do medo. 

Todos sabemos que os imigrantes não consomem recursos da segurança social, mas, ao contrário, contribuem para ela. Todos sabemos que a sua partida massiva não resolveria nenhum problema econômico, mas geraria muitos. E permitimos, no entanto, que se criasse e se desenvolvesse um discurso consensual sobre a imigração que a vê como patologia social. Uns quantos evitam discuti-la com medo que isso agrave o problema. Outros ainda suplicam pela partida de alguns – talvez a começar pelos menos aceitáveis, ou menos úteis (os ciganos vêm mesmo a calhar) – como forma de evitar maiores reações de rejeição. Política de apaziguamento: alimentemos o crocodilo na esperança de sermos os últimos a ser devorados

As palavras talvez pareçam fortes, mas o que se passa no discurso político ocidental é o regresso do racismo e da xenofobia sob a capa enganosa do nacionalismo. Lentamente, todos acordamos para esta nova realidade, na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil. A pretexto de combater o politicamente correto, a extrema-direita dispõe-se a quebrar os códigos de respeito e de convivência que a democracia impõe e inaugura uma nova era de violência verbal que adota os códigos da guerra total. Ela não pretende a vitória, mas a eliminação do inimigo. 

A pureza cultural justifica a operação de segregação dos “corpos estranhos” que põem em causa a identidade nacional, que se aproveitam dos recursos públicos e que impedem a vitalidade econômica. O migrante substituiu o judeu – o mesmo inimigo interno, o mesmo cancro, o mesmo veneno que explica todas as frustrações econômicas do Ocidente. O imigrante é, hoje, o novo bode expiatório, o novo rosto do racismo. 

Se substituirmos o imigrante pelo pobre, encontraremos então o Brasil – o pobre culpado do desequilíbrio da Previdência, o pobre culpado pela despesa pública, o pobre culpado por ser pobre –, o pobre culpado por existir. A luta de classes regressa estimulada pela extrema-direita e não se manifesta num ressentimento dos de baixo para com os de cima, mas no ódio que os de cima dedicam a qualquer espécie de igualdade com os de baixo. Lentamente, o Brasil regressa às duas humanidades irreconciliáveis: uma, a da miséria, a outra, da superabundância.   

O Estado alemão homenageou Von Stauffenberg, o oficial que conspirou para assassinar Hitler em 1944. No discurso que ali fez, a chanceler Angela Merkel apelou ao combate à extrema-direita – combate, nada menos. Há boas razões para pensar que, na Europa, a direita democrática existe e não pactuará nem com a violência nem com o extremismo. No Brasil, o caso parece ser outro. Ao promover o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a direita que se afirmava democrática fez um pacto com o diabo. No meio da doideira em que a vida política brasileira se transformou, a dúvida não é saber se ela ainda existe, mas se alguma vez existiu.

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