Opinião
A miséria, a economia e a fé
Com ecos do integralismo, o discurso radical bolsonarista apoia-se em um tripé ideológico e político
Temos um mês e 21 dias até o primeiro turno do pleito eleitoral. Que ainda haja uma parcela expressiva da população determinada a votar em Bolsonaro parece uma questão urgente para os debates sobre a possibilidade de construção de outro país, após seis anos de erosão e dilapidação do nosso parco exercício democrático.
Em primeiro lugar, existe uma questão material que não pode escapar à nossa discussão: voltamos a ser um país de miseráveis. Segundo dados coletados e analisados pela série histórica Insegurança Alimentar no Brasil: Pandemia, Tendências e Comparações Globais, o número de pessoas que passaram fome no Brasil em 2021 foi o dobro daquele de 2014.
Tal flagelo apresenta nuances que expõem outros aspectos da desigualdade. O número de mulheres em situação de fome e/ou insegurança alimentar foi o dobro daquele dos homens, e o da classe trabalhadora na informalidade, três vezes maior que os números para trabalhadores formais.
E há outros resultados aviltantes. Os 20% mais ricos da população brasileira têm dados de fome iguais àqueles de países como a Suécia (em torno de 5%), ao passo que os 20% mais pobres equiparam-se a países como Serra Leoa (com índices de fome em torno de 77% da população).
Ao compilar os dados da seção “igualdades” da pesquisa, a revista Piauí retoma a formulação do economista Edmar Bacha, que, nos anos 1970, valeu-se do termo “Belíndia” (Bélgica + Índia) para retratar a desigualdade abismal em nosso país. Quase meio século depois da formulação, a desigualdade segue como uma estrutura fundante da nossa sociedade.
O segundo ponto a ser discutido diz respeito à forma como a operação discursiva do bolsonarismo ganha espaço. Vladmir Safatle (candidato a deputado federal pelo PSOL) é expoente de um setor da intelectualidade que tem construído a seguinte compreensão: o bolsonarismo representa (e se apropria de) um discurso de ruptura institucional que se contrapõe há quase duas décadas de políticas conciliatórias organizadas por governos de centro-esquerda, e é produto dessas conciliações.
Em uma espécie de continuidade do movimento integralista do início do século passado, o discurso radical do bolsonarismo vale-se do antagonismo e do conflito social para organizar seu polo político. No campo de esquerda, por outro lado, não parece haver esforço da hegemonia, mesmo com a experiência social e política evidenciando que parcela expressiva da população clama por radicalização e foi cooptada – de forma mais pronunciada, desde 2013 – pelo setor que compreendeu isso.
Essa manipulação discursiva pôde ser vista, recentemente, quando a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, em discursos assemelhados aos dos cultos evangélicos, valeu-se de um léxico religioso para declarar que as eleições de 2022 representam a “guerra do bem contra o mal”. Acenando à base neopentecostal, ela incorreu em terrível racismo religioso ao insinuar que Lula estaria fazendo “pacto com o demônio” encontrando-se com religiosos de matriz africana.
Por fim, Paulo Guedes, em evento realizado com investidores do mercado financeiro, disse ter “violado o teto de gastos, mas com responsabilidade fiscal”. Tal fala é significativa e didática. O mito da “austeridade fiscal”, projeto neoliberal encabeçado por Guedes, vê falta de dinheiro e problema de balanço contábil apenas quando o que está em pauta é a estruturação de um Estado capaz de amenizar a miséria e o mal-estar da população. Se o alocamento dos recursos visar uma manobra eleitoral (PEC Kamikaze) e aumento de popularidade com setores beneficiados (caminhoneiros e taxistas, por exemplo), vale tudo.
Bolsonaro manipula um desejo legítimo por mudanças radicais/estruturais na sociedade brasileira e alimenta uma postura fascista. Michelle manipula a fé e a crença do eleitorado para produzir pânico moral e desinformação. Guedes, por sua vez, tranquiliza a burguesia e manipula o discurso e a política econômica para que a desigualdade siga como matriz formal do País.
Estes parecem ser os três principais setores da base bolsonarista. Nosso trabalho deve ser identificá-los e entender como foram cooptados por nossos inimigos. Os dois primeiros setores estão repletos de consciências que devem ser disputadas. Já o terceiro tem interesses inconciliáveis com outro projeto possível de país, e é, portanto, um inimigo com o qual as aproximações e alianças continuarão a produzir profundos problemas políticos no futuro. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A miséria, a economia e a fé”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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