Opinião

A mesa da mudança: vamos nos permitir um momento de esperança

A hipótese de um entendimento entre as forças progressistas não é descabida nas circunstâncias atuais

Papa Francisco no Vaticano, sozinho
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“Não ouvimos o grito dos pobres e do planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis em um mundo doente.”

Dia 27 de março, anoitece sobre a Praça São Pedro e a chuva não para. Na atmosfera cinzenta o papa Francisco caminha em direção à escadaria da Basílica, onde o esperam a imagem de uma Virgem Maria de 1300 e um crucifixo, os mesmos que foram carregados em procissão em uma Roma atingida há séculos pela Peste Negra. Ali, na tenda improvisada para proteger o pontífice, ele pronuncia a sua homilia e abençoa urbi et orbi a terra prostrada. Fala para uma praça deserta, mas as palavras transpõem a colonnata de Bernini a cercar o espaço em perfeita simetria e alcançam quem sabe ouvi-las. Bergoglio, faz tempo, é o grande líder de quantos percebem que “a avidez de lucro” afastou o mundo da realidade e o transtornou pela pressa. Como em muitas outras ocasiões percebe-se a presença do castigo imposto pela natureza.

Me ocorre evocar a situação gravíssima de Milão, admiravelmente descrita por Alessandro Manzoni no seu I Promessi Sposi, obra de valor universal, no cenário de uma cidade dominada pelos espanhóis e entregue ao ataque da Peste Negra em pleno século XVII. O romance foi lido recentemente pelo papa, que ao falar de si mesmo comentou “eu não sou Don Abbondio”, personagem tíbia, serviu, de joelhos diante da prepotência ibérica. Séculos depois, Milão atravessa um momento muito próximo daquele colhido pela pena de Manzoni. Havia razões de castigo então, como as há hoje.

Os cientistas garantem que a pandemia algum dia terminará. De todo modo, algo é certo: depois desta tragédia, o mundo não será mais o mesmo. Há dúvidas, por exemplo, em relação ao destino da União Europeia, um dos raros lugares onde há quem ainda preze a ideia da democracia. Não é este claramente o desígnio do húngaro Viktor Orbán, que se aproveita do coronavírus para estabelecer a sua ditadura.

E não faltam outros a nutrir pensamentos similares, entre eles o líder da Lega italiana, Matteo Salvini, o qual aprova o gesto de Orbán, porque, sustenta, autorizado pelo Parlamento magiar. Galga o mesmo patamar dos nossos generais, prontos a celebrar o aniversário do golpe de 1964 como patriótica e bem-sucedida tentativa de defender a democracia. O bestialógico não arrefece: até o mundo mineral sabe que a ditadura é o exato oposto de um regime democrático. Quanto à Europa, quando a Itália pede uma ajuda coral da UE, Alemanha e Holanda resistem propondo uma solução adequada apenas a situações econômicas, como se deu tempos atrás com a Grécia. É um fenômeno de egoísmo nacionalista que ainda porá em xeque o futuro da União.

Chegamos a este Brasil infeliz por desconhecer a dimensão de sua desgraça, que o torna especialmente frágil à frente da pandemia. O País é, aos olhos de todos, uma nave desgovernada e aquele que haveria de ser o timoneiro está perdido na névoa da sua demência. Até o momento, recusa-se impavidamente a entender o que está em jogo muito além da sua poltrona presidencial. O povo, sem exceções, recorre a medidas de precaução conforme o que sabe por meio do noticiário internacional. Diante do mal comum, casa-grande e senzala tomam os cuidados que a razão e o exemplo estrangeiro recomendam.

Que será do País quando a pandemia terminar, talvez bem mais tarde do que hoje se imagina e se espera? Inegável é que a conjuntura política é totalmente irregular e inaceitável. Vivemos o resultado de uma série de golpes desfechados entre 2014 e 2020, a desaguar na eleição deste presidente tão inclinado a nos envergonhar. Seria possível, aplacado o tsunami, repetir fatos ocorridos em países que, sujeitos a ditaduras, recuperaram os valores antes professados, ou, se o caso aponta para o Brasil, almejados por alguns com fé sincera. Me vem à mente o exemplo da negociação espanhola que se seguiu à morte de Francisco Franco.

Uma mesa composta por figuras sem ligação com a ditadura franquista desaguou nos chamados Pactos de La Moncloa, com destaque especial para Adolfo Suárez, que comandou a operação, direitista corajoso e elegante, capaz de deixar nítida a sua fé democrática. Obviamente, à mesa não se sentaram falangistas, assim como, houvesse mesa similar no Brasil, nela não caberiam todos os envolvidos nos golpes dos últimos seis anos, perpetrados pelos próprios poderes da República. E não me permito qualquer tipo de exceção em relação à maioria dos ministros do STF e a inúmeros parlamentares, todos eles inequivocamente golpistas.

Uma coluna de Marcos Coimbra, publicada na edição da semana passada, tem o mérito de ter levantado a questão: à mesa tem de sentar-se Lula. O próprio, em palavras recentes, se declara pronto a conversar com figuras do porte de Ciro Gomes e Guilherme Boulos. Aos meus ouvidos estas declarações soam como sinfonia. Está claro que o ex-presidente Lula, fundador do PT e dono de um patrimônio eleitoral notável, terá o que dizer quando tratada devidamente a doença e habilitado o País a buscar o futuro para emergir de vez da Idade Média.

Conversei com Lula quando ele saiu da cadeia curitibana, disse-me então que o tempo dos compromissos havia terminado. Era hora do confronto. O seu partido, entretanto, continuou a pisar a corda do equilibrista, sem mostrar disposição para seguir a orientação inicial do fundador.

A hipótese de um entendimento entre as forças progressistas não é descabida nas circunstâncias, mesmo porque há razões para supor que as Forças Armadas já não cultivam o tradicional apetite pelo poder, à vista da complexidade e dos riscos da situação. Sei que haverá quem se refira à célebre correlação de forças, o que no fundo simplifica a questão. Quem é morador cativo da casa-grande? Os donos do dinheiro, os latifundiários, os pecuaristas. Turma aguerrida e perigosa que até hoje ganhou todas as paradas, para fazer do Brasil um imenso território da sua exclusiva propriedade.

Não é por acaso que somos o país mais desigual do mundo, e assim traímos as imensas potencialidades proporcionadas pela natureza e que nos destinavam à grandeza no cenário mundial, para criar apenas uma casta de super-ricos e uma imensa maio- ria de párias. Ao sabor da luta contra a pandemia, vários países, sobretudo europeus, encontraram uma unidade nacional em grande parte perdida. Trata- se de belos exemplos que, com a necessária coragem para recompor o cenário e estabelecer limites à prepotência e à hipocrisia da minoria, haveriam de ser fonte decisiva de inspiração.

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