Economia

A falácia da PEC Emergencial

Cumpre defender com veemência os avanços conquistados na saúde e educação, escreve Renê Trentin

O Sistema Único de Saúde foi fragilizado pelo Teto de Gastos. Foto: Agência Brasil.
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Está para ser votada no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, de 2019, que visa, segundo seu relator, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), a reduzir as despesas obrigatórias de todos os níveis de governo (federal, estadual e municipal), a fim de viabilizar o cumprimento do teto de gastos e promover o equilíbrio fiscal.

A medida é tida como condição para a retomada do Auxílio Emergencial que, se, por um lado, faz-se de fato necessário para combater o desemprego provocado pela pandemia do coronavírus, por outro lado, carrega também motivação eleitoreira e populista, dado que o benefício demonstrou ser uma alavanca da popularidade do presidente da República. 

Para viabilizar esse equilíbrio fiscal (e esse objetivo eleitoral), a PEC 186 propõe, entre outras medidas, eliminar a obrigatoriedade, para as três instâncias de governo, de investir percentuais mínimos em saúde e educação. 

Vale lembrar que a Constituição Federal, em seu Artigo 198, estabelece critérios para o investimento em saúde, a fim de assegurar o atendimento universal à população. No caso da União, por exemplo, o valor nunca poderá ser inferior a 15% da receita de cada exercício financeiro. Por sua vez, o Artigo 212 prevê que a União aplique anualmente, pelo menos 18% de suas receitas resultantes de impostos em educação, enquanto estados e municípios devem aplicar 25%. Boa parte desses recursos compõe o Fundeb, necessário para o funcionamento dos sistemas de ensino do País. 

A garantia desses percentuais de investimento na saúde e na educação, embora ainda insuficientes, foi uma conquista do povo brasileiro. E sua manutenção se faz necessária para assegurar o direito a esses serviços. Saúde e educação, aliás, integram o conjunto de direitos sociais considerados cláusulas pétreas de nossa Carta Magna e, portanto, irrevogáveis. Daí o caráter inconstitucional da referida PEC.

Em declaração à imprensa, o relator justificou a proposta alegando, no caso da educação, que o grau de vinculação das receitas é exagerado e, mesmo assim, “não resolveu nada”, pois ainda estamos “entre as 20 piores nações do mundo”. 

Se o argumento é válido para a educação, por que não o aplicar também a outros campos da vida nacional? Poderíamos, por exemplo, reduzir o salário de deputados e senadores

De fato, os índices educacionais do Brasil não são nada animadores: de acordo com o PISA 2018, para citar apenas um dos indicadores que retratam nossa tragédia educacional, de um total de 79 países avaliados, o Brasil está entre o 58º e 60º lugar em leitura, entre 66º e 68º em ciências e entre 72º e 74º em matemática. A avaliação mostrou, ainda, que se fosse considerado apenas o desempenho dos estudantes de escolas privadas de elite, o país estaria na 5ª posição.

Isso faz saltar aos olhos o caráter classista da desigualdade educacional e demonstra inequivocamente que os mais afetados por uma eventual redução dos investimentos públicos serão, seguramente, os mais pobres, justamente aqueles que mais dependem das escolas públicas. Essa desigualdade se torna ainda maior no contexto da Pandemia, em que grande parcela dos estudantes das redes públicas foi (e continua sendo) impossibilitada de estudar em virtude do fechamento das escolas e das dificuldades de acesso aos recursos tecnológicos para um adequado aproveitamento das aulas on line.

Mas se o senador acerta no diagnóstico, o remédio que prescreve segue uma lógica estapafúrdia. Para Bittar, já que estabelecer um percentual mínimo de investimento não tem sido suficiente para reduzir nossas deficiências educacionais, cumpre, não ampliar esse percentual, mas eliminar seu caráter obrigatório para que os recursos possam ser destinados livremente pelos governos às áreas que julgarem prioritárias. Esse seria o caminho para melhorar os índices educacionais!

Ora, se o argumento é válido para a educação, por que não o aplicar também a outros campos da vida nacional, cuja performance deixa a desejar: poderíamos, por exemplo, reduzir o salário de deputados e senadores, visto que mantê-los nos níveis atuais e associados a diversos outros benefícios, também “não resolveu nada”. 

No caso da saúde, a perversidade da proposta é ainda mais assustadora: como é possível que, em meio à maior crise sanitária da história da humanidade, com quase 250 mil mortos no país, mais de mil por dia, falta de leitos e de vacinas e risco de colapso do sistema de saúde, um membro do Parlamento, representante do povo e eleito por ele, ter a coragem e a desfaçatez de propor a redução de investimentos na saúde pública? 

Acontece que, para o senador, aquilo que mais precisamos no momento é, como ele diz em seu relatório, “do sopro de confiança da classe produtiva dos investidores para acionar as engrenagens do crescimento econômico”. Vê-se, claramente, quais são seus verdadeiros compromissos. A saúde, a educação e a vida da população podem ficar em segundo plano. Aliás, quanto menos saudável e instruído for o povo, tanto mais docilmente assimilará argumentações falaciosas como a do Senador e do grupo que ele representa e que, no fundo, em última instância, favorece o setor educacional privado.

Ainda temos muito o que avançar em saúde e educação para que sejam uma realidade para todos. Mas agora cumpre defender com veemência os avanços conquistados. Para tanto, o cidadão comum pode pressionar os senadores de sua região e votar NÃO na consulta pública já aberta sobre o tema. 

Aos parlamentares verdadeiramente comprometidos com as necessidades da população, cabe barrar a PEC 186 e, em vez de reduzir, buscar formas de ampliar e aprimorar o investimento público nessas áreas, mesmo porque esse é o único caminho que poderá nos conduzir ao desenvolvimento econômico, com soberania, paz e justiça social.

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