Justiça

A estranha quarentena com empregada doméstica no ‘Brazil Corona’

Extra, extra!Vivemos no Brasil Corona do Brasil Colônia, onde pessoas fazem quarentena com suas empregadas domésticas em casa!

Foto: Nelson Almeida/AFP
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Dedico a Thiago Fabres de Carvalho, que certamente estaria chocado com isso tudo

Chocado e com ódio. Assim li a reportagem no Blog do Lauro Jardim que tratava de uma empregada doméstica estava trabalhando na casa de um casal infectado pelo corona vírus, em São Conrado.

Chamaram-me a atenção, na reportagem, dois pontos: o primeiro, a fala supostamente atribuída ao casal dando conta da preocupação deles em isolar-se, mas mantendo a empregada doméstica trabalhando para eles; o segundo, a omissão do jornalista ao não manifestar nenhum tipo de indignação ou denúncia com essa situação. Um silêncio complacente. Conta a matéria:

Desde então, o casal está em casa, no bairro de São Conrado, em quarentena. Ambos conversam com os médicos por telefone. Ambos passam bem.

A empregada do casal, cujo exame deu negativo, está trabalhando de avental, luvas e máscara.

Nem o empresário nem sua mulher tiveram recentemente qualquer contato com pessoas que estiveram em países com surto de coronavírus.

Este artigo pretende analisar o ato falho da reportagem ou do casal que, ao utilizar a palavra quarentena, no sentido de isolamento, deixou escapar como a maioria grande parcela da população brasileira enxerga as empregadas domésticas.

Pois muito bem.

Palavras que tropeçam são palavras que confessam – eis a definição que Lacan e Garcia Roza dão ao termo ato falho. Uma palavra que tropeça, então, entrega aquilo que está no inconsciente, oculto, mas escapou.

Chamar o marido pelo nome do amante, esquecer o anel de casamento quando estava indo se casar, despedir-se de alguém com um boa morte (em vez de boa sorte) são só alguns exemplos de atos falhos que entregam aquilo que estava oculto, no inconsciente, mas escapou: a saudade do amante, a vontade de não casar e o que a pessoa deseja àquele que ela está se despedindo.

O uso da palavra quarentena, nesse sentido, deixa escapar algo revoltante: a maioria da classe média não enxerga as empregadas domésticas como pessoas. Reparem que o diálogo com um médico – considerado pela maioria da classe média como uma pessoa – se dá à distância, pelo telefone. Aqui todo o cuidado com seu semelhante.

 

Já com a empregada doméstica o contato é direto! É direito porque a quarentena serve para isolar as pessoas a fim de proteger outras pessoas. Mas para quem não enxerga uma empregada doméstica como uma pessoa, ela pode ficar no mesmo ambiente de pessoas infectadas com o corona vírus e, além disso, trabalhando para elas.

Reparem na sutileza das palavras, porque elas, como disse o maior de todos, Fanon, não são neutras. O casal está em quarentena, “isolado”; não fala com ninguém. Apenas com o médico (por telefone). A empregada é um ninguém. É o ninguém quem está ali, ajudando-os. Eis como a maioria da classe média enxerga àqueles que servem de escada para o seu sucesso.

A lógica colonial que enxerga empregados domésticos como coisas mantém viva e forte no dia atual. Se há alguns anos, houve um escarcéu pelo reconhecimento de humanidade nas empregadas domésticas que reivindicavam direitos trabalhistas como de qualquer outra pessoa trabalhadora, vivemos agora no Brasil Colônia o Brasil Corona, onde elas, por serem reduzidas a objeto, são incapazes de contrair o vírus.

Exige-se o reconhecimento da humanidade dessas trabalhadoras!

Infectada, muito provavelmente, ela, a empregada, também poderá infectar seus filhos. E não terá médico para atendê-la por telefone. Será no SUS. Ela, doente, levando os filhos, também doentes, que contraíram o vírus de alguém que ainda poderá lhes dizer: – Demos máscaras e luvas à empregada doméstica. Ela que não soube usar direito. Te vira!

Em nenhum momento a reportagem se dá conta de que o casal não está isolado p… nenhuma! Eles estão com uma empregada doméstica que, agora, além de empregada doméstica, será também enfermeira. E não ganhará mais por isso. E há quem dirá que ela deve agradecer pelos infectados darem trabalho a ela. Esse tipo de gente, que diz isso, é aquela que, durante a enchente que matou muitas pessoas, ligou ao Ifood para que um jovem fosse levar comidas, para eles, de bicicleta. E ainda reclama porque a comida chega fria.

Trata-se da mentalidade Casa Grande que habita a mente da classe média que pensa que é rica e que tem esse estranho hábito de fazer uma quarentena com empregada doméstica, uma quarentena ‘chique’. Nada mais retrógrado, mas também na mais representativo do Brasil Colônia, ops, do Brasil Corona.

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