Jessé Souza

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Sociólogo, professor universitário, pesquisador e escritor brasileiro. Autor de "A Elite do Atraso" e "A Classe Média no Espelho".

Opinião

A esquerda brasileira é capaz de aprender?

Os candidatos progressistas não entenderam o que estava em jogo na campanha

Fotos: Reprodução
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As últimas eleições, é certo, se deram sob condições especialíssimas. E não apenas pela produção em escala industrial e ilegal de fake news.

Produto final de um golpe de Estado rentista-midiático, produzido entre 2013 e 2016 sob o comando do capital financeiro internacional e nacional, que logrou colonizar o Parlamento e o Poder Judiciário, as últimas eleições foram o golpe de misericórdia de todo o processo.

Desde 2013, o trabalho de destruição dos ainda frágeis consensos morais que sustentavam a jovem democracia brasileira foi levado a cabo, diuturnamente, pelo conluio entre a mídia venal, comprada pelos interesses rentistas, e o Judiciário, surfando na onda de criminalização da política.

O Judiciário, que ninguém com mais de cinco anos de idade pode julgar menos corrupto do que o sistema político, adorou o papel de santidade e pureza que lhe foi atribuído pela mídia venal. Isso lhe permitiu travestir seus interesses corporativos, possibilitados pela chantagem do poder político como representante direto da soberania popular, em interesse geral.

A partir daí, aos olhos do público bestializado, os interesses de saque e rapina econômica da elite rentista internacional e nacional foram não apenas distorcidos, mas  “moralizados” e, portanto, “sacralizados” na figura do juiz Sérgio Moro e na Operação Lava Jato, ambos transfigurados como agentes da “limpeza moral da nação”. Não compreender este fato é não compreender o núcleo do esquema de dominação econômica e política que submeteu a sociedade brasileira como um todo.

A espantosa falta de inteligência dos dois principais candidatos da “esquerda” nas últimas eleições foi, precisamente, não ter percebido o elo constitutivo entre o empobrecimento geral da população, possibilitado pela expropriação do excedente econômico geral via juros extorsivos embutidos em todos os preços e a apropriação fraudulenta do orçamento pública via uma “dívida pública”, que não é nem “dívida” nem “pública”, e sua transfiguração em limpeza moral a serviço do interesse geral.

Simplesmente não foi revelado à população empobrecida e, portanto, legitimamente raivosa e ressentida com seus representantes, o elo causal que teria permitido compreender a ligação entre o aumento do desemprego, da violência e da pobreza e o embuste da estratégia legitimadora elitista.

Ambos defenderam a Operação Lava Jato e apenas criticaram “abusos menores”. Isso em relação a uma operação de suposto combate à corrupção que blindou literalmente o sistema financeiro, a origem real da “corrupção” tanto ilegal quanto legalizada, os órgãos da mídia venal, e o poder judiciário como um todo.

Além disso, se concentrou, seletivamente, na perseguição de líderes populares, como Lula, e no combate de fachada aos meros “operadores” de esquemas legais e ilegais de apropriação do Estado pelos donos do mercado.

Desde o fim da República Velha, o moralismo postiço do suposto combate à corrupção, elevado ao status de interpretação dominante do País e a criminalização seletiva da política, do Estado e da soberania popular, serve à eternização desta república e de seus dois fundamentos principais: tornar o orçamento do Estado pago pelos pobres em banco particular da elite e criminalizar sob todas as formas a soberania popular.

Este “bode expiatório”, que detém seu quinhão de verdade, senão não engana ninguém, serve para tornar literalmente invisível a “corrupção legalizada” do mercado, que compra a política para vampirizar a sociedade por meio de mecanismos de mercado e de Estado.

Eis um exemplo. Ninguém em sã consciência deixaria de achar condenável a rapina pessoal do ex-governador Sérgio Cabral e dos seus 280 milhões de reais desviados. A população do estado do Rio de Janeiro não ficou, no entanto, mais pobre por conta destes desvios. É um ato recriminável sem dúvida e merece punição.

O que empobreceu de fato o Rio de Janeiro foi a propaganda da mídia venal associada à Lava Jato na campanha de criminalização da Petrobras, empresa da qual o Estado inteiro dependia, antes responsável, inclusive, por mais de 50% do investimento público em infraestrutura e por milhões de empregos.

A perda aqui é na escala de centenas de bilhões de reais, senão de trilhões, montante suficiente para empobrecer e desempregar, efetivamente, populações inteiras. A superfície “aparentemente legal” deste expediente permite tornar invisível a secular expropriação elitista das riquezas nacionais e ainda culpar convenientemente um “bode expiatório”.

Assim legitimada, a patranha elitista pode ser eternizada séculos a fio sem reação e sem denúncia. Estigmatizada e criminalizada enquanto empresa, a Petrobras está prestes a ser vendida por preço de banana, como acontece em todo saque privado às riquezas públicas desde que o Brasil é Brasil.

Um leitor mal intencionado, ou especialmente obtuso, diria que quero minimizar a corrupção política, quando apenas chamo a atenção ao vínculo orgânico e constitutivo entre as patranhas do mercado e de seus donos e sua legitimação como instrumento de suposta moralização pública.

Ao entrevistar, recentemente, seis ex-engenheiros da Petrobras para meu último livro, “A classe média no espelho” (Estação Brasil, 2018), que perderam o antigo emprego e se transformaram em motoristas do Uber, todos me disseram que a culpa da desgraça pessoal seria da “política” e do “Cabral”.

Foi o que aconteceu com a população brasileira como um todo. A invisibilidade desse processo é obviamente ainda maior para as parcelas mais pobres da população.

Quando a esquerda não denuncia este esquema elitista, e, ao contrário, o legitima e o valida expressamente, no elogio a Moro e à Lava Jato, me pergunto como pretende ganhar não só eleições, mas esclarecer a população sobre as causas reais de sua desventura e exploração?

Neste contexto, imaginar que a oposição abstrata entre democracia e fascismo, quando a maioria do povo vive um “fascismo prático” de violência e exclusão, pode criar comoção e simpatia para sua causa, sem explicar as causas da pobreza real, é de uma ingenuidade fantástica.

Quando Ciro Gomes atenta para a questão, ainda que fragmentada e fora de contexto, do endividamento da população e ganha apoio inaudito precisamente por conta disso, sem remontar o quadro inteiro e sem restituir, portanto, a inteligência do povo subjugado, nem esse fato empírico convence a esquerda da mudança de discurso.

O que mais é necessário acontecer para que se compreenda que uma esquerda dominada pelo discurso do seu algoz é impotente politicamente? Uma esquerda dominada há cem anos pelo discurso moralista postiço da classe média, sua classe efetiva de referência, e assombrada pelo mais absoluto desconhecimento da vida prática da população sofrida e pobre, poderá exercer alguma função relevante no futuro?

Quando, finalmente, a “esquerda” irá aprender que sua reinvenção está umbilicalmente ligada à construção de uma narrativa totalizadora não colonizada pela elite?

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