Opinião

A dominação trocou coturnos por sapatos – e até chinelos

No campo teórico, ela chega a confundir filosofia com filosofia política, Wittgenstein com Gramsci

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“Ninguém canta como eu a palavra ‘fome’ ou a palavra ‘amor’. Sem dúvida, porque eu sei o que há por trás dessas palavras.” (Billie Holiday)

No século XXI, a dominação não deve dizer o próprio nome. Na obscuridade do anonimato, ocupou o lugar que fora do amor pelo mesmo sexo, o qual, no século XIX, tampouco podia dizer o seu, na definição do gênio da literatura irlandesa, Oscar Wilde.

Mas não de amor a dominação trata; ao contrário, trata de ódio, preconceitos e espoliação. Para isso, passou por mutação que lhe dificultasse a identificação; adaptou-se, modernizou-se, para continuar atingindo objetivos inconfessáveis, quais sejam: submeter povos, roubar riquezas, destruir soberanias.

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Mudou, para que tudo continuasse como sempre, no dizer de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor do “Leopardo” (“Il Gattopardo”), romance que se tornaria também uma obra-prima do cinema universal, sob a direção do diretor antifascista Luchino Visconti.

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Dessa maneira, no início do milênio, a dominação trocou coturnos por sapatos e até chinelos (de elegância duvidosa, é certo); tanques por carros blindados; batalhas imundas por diplomacia tão ou ainda mais infecta. No campo teórico, ela chega a confundir filosofia com filosofia política, Wittgenstein com Gramsci, numa sopa de letrinhas pouco original, mas bastante indigesta.

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Sob o disfarce, manipula massas, de sorte a não perceberem golpes de estado, mais uma vez sob tutela militar, mais uma vez sob a dissimulação da lealdade, que, no entanto, dolorosa e criminalmente trai, como o fez no Chile, em 1973. Entretanto, se a troupe é tosca, sofisticado é o projeto que lhe tocou executar, elaborado em outras latitudes, of course.

Mas em demasia é afoita a tosca troupe, pois tem memória recente da escravidão; não acredita estar cerceada sequer por limites de tempo e espaço (alguns de seu círculo – ou circo – rejeitam até a forma da terra e a força da gravidade).

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Por isso, pensa a tosca que suas artimanhas podem ser exportadas, como faz com a soja glifosada, a carne invasora de terra indígena ou o minério empapado de sangue e lama tóxica.

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Por que deve a existência a amos de outras plagas, não vê dificuldade em ser parte coadjuvante de tragédia – sob disfarce humanitário – para agredir o próprio vizinho. Destarte, rasga a Carta das Nações Unidas e desrespeita a soberania alheia, pois a própria vilipendiada há muito está.

Acredita que poderá ser vitoriosa em seu intento porque venceu, assimilando aplicativos a armas. Uma vez no poder, passou a ter encontros diretamente com os fabricantes de revólveres, aos quais a falsa legalidade garantirá muitos lucros, conquanto o sangue – negro, principalmente – seja ainda mais caudaloso.

Nos mesmos boudoirs, propõe a legalização das execuções em massa e o consequente tráfico de órgãos, seguindo o anterior roteiro dos nazistas. Para isso, elabora projetos de lei, a fim de que se mantenham as aparências da legalidade.

Vai além: em delírio de onipotência  – é escassamente cultivada, nunca tendo ouvido falar ou entendido o mito de Ícaro – busca transpor a barbárie para o âmbito externo, esquecendo-se de que não todos foram o último país a abolir a vergonhosa escravatura e que a ignorância de que é portadora não encontra parâmetro entre a comunidade das nações civilizadas. Mede a desenvoltura externa pelo poder de compra em Miami ou em algum povoado da Virgínia profunda.

Por isso, aceita, sem questionar, que o argumento humanitário serve de álibi para a agressão externa, nos moldes das mentiras de que se vale internamente. Engana-se, porém. A América Latina e o Caribe não são mais a obra exclusiva do latifúndio. Como aqueles das Nações Unidas, até os mastros de nossas bandeiras sabem que o argumento humanitário é invariável e hipocritamente brandido para travestir invasão externa.

Se realmente houvesse preocupação humanitária, sanções não teriam sido aplicadas à Venezuela, pois, também nas Nações Unidas, até os microfones têm ciência de que as mesmas atingem ainda mais a população vulnerável, jamais as empresas e armadores dos países que as impõem, experts todos eles na arte de transgredi-las e, graças a elas, obterem lucros ainda maiores.

Em prova disso, vale mencionar a experiência de dignidade de uma grande mulher, a ex-Subsecretária-Geral da ONU para Assuntos Humanitários, Valerie Amos, negra como Billie Holiday, nascida na Guiana, a qual, a despeito de toda a pressão das grandes potências ocidentais para abrir um “corredor humanitário” na Síria, pelo qual passariam armas, disse: “Não abro, pois sei o que passa por um corredor humanitário”. Resistiu e, graças à coragem dela, a paz poderá chegar, finalmente, à Síria. Mas aquela era, de fato, uma estadista, não fingia ser.

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