Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

A democracia sob a comunicação militar

O retorno público dos militares à política não tem se dado apenas nos gabinetes, mas também nas redes sociais

Foto: Alexandre Manfrim/Ministério da Defesa
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A história da política brasileira se confunde com a ausência de separação clara entre os poderes militar e civil. Isso não é novidade, inclusive no que diz respeito à existência de militância políticas de muitas matizes ideológicas dentro das Forças Armadas – ainda que com grande assimetria quantitativa –, como mostra o pesquisador Paulo Ribeiro da Costa em seu livro Militares e Militância. Todavia, não deixa de ser singular o fato de que o militarismo político, desde a fundação de nossa República, tenha fincado raízes tutelares que atravessaram o século XX com uma ditadura e hoje se faça presente, em pleno século XXI, num governo militarizado.

Ao longo da Nova República, tivemos uma espécie de acondicionamento do desejo de tutela política dos militares, principalmente no período que vai do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso à interrupção brusca do segundo governo Dilma, passando pelos dois mandatos de Lula. O símbolo mais evidente dessa tentativa de reservar a administração dos negócios públicos ao poder civil se deu por meio da indicação de civis para chefiarem o Ministério da Defesa. Trata-se de um dos elementos fundamentais para explicar o levante de militares, que trocaram as pressões e tutelas de bastidores pelo front de um candidatura militarista em 2018. Sentiram-se alijados de um campo que lhes pertence por natureza tradicional.

Logicamente, como já escrevi em outras oportunidades, a tentativa de responsabilizar militares pelas atrocidades que cometeram ao longo da ditadura foi um dos gatilhos do antipetismo e do golpismo do século XXI das Forças Armadas brasileiras. Não é coincidência que é exatamente após a deposição de Dilma e com Temer no poder, os militares se reinserem com vigor na vida política brasileira, como demonstra a jornalista Natalia Viana em seu recém-lançado Dano Colateral. A intervenção militar política se deu, efetivamente, antes da intervenção militar no Rio de Janeiro. Militares deram as garantias e os apoios necessários para o impeachment.  Em entrevista ao podcast de Renata Lo Prete, a autora nos lembrou que o desejo dos militares de se inserir perenemente nos debates públicos é pervasivo.

Em outras palavras, a convicção de militares como Sergio Etchegoyen e Eduardo Villas Boas — de que membros das Forças Armadas devem se fazer presentes nas discussões sobre os negócios civis — não coincidentemente, encontra ecos passados no mentor intelectual de Bolsonaro e Mourão. Embora seja mais conhecido pelas atrocidades cometidas em seus porões na ditadura militar, Carlos Brilhante Ustra foi um ideólogo que trabalhou para difundir ideias que colocavam os militares no centro da vida política brasileira. Vale buscar informações sobre seu livro A Verdade Sufocada e o projeto?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> Orvil para se ter uma ideia clara desse continuum.

No entanto, há uma dimensão desse fenômeno que talvez não esteja sendo tratada com a devida atenção. E isso diz respeito à comunicação. O mundo vem passando por transformações sociais, econômicas e políticas significativas nos últimos tempos, inclusive no que diz respeito aos desafios impostos às democracias contemporâneas. Como defendo em um artigo apresentado no último congresso da Associação dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação com o colega Ricardo Fabrino Mendonça, estamos diante de visíveis mudanças estruturais da esfera pública. A comunicação massiva não se define mais pela centralidade dos veículos tradicionais de comunicação, pelo tradicional controle de agendas e enquadramentos dos setores empresariais de “mídia”, mas por formas disruptivas, segmentadas e tribalizadas de produção, distribuição e circulação de informações. Mas, também, fundamentalmente, por novas formas de sociabilidade. E, ao contrário do ciberotimismo das décadas de 1900 e 2000, com implicações severas à democracia.

Eu poderia, mais uma vez, usar Jair Bolsonaro como um exemplo dessas novas transformações, ou seja, da possibilidade de um sujeito como ele chegar à Presidência subvertendo todas as variáveis que costumavam incidir sobre a viabilidade de uma candidatura presidencial, como estrutura partidária, orçamento e tempo de rádio e televisão. Mas, como venho insistindo, Bolsonaro é menos causa do que consequência.

Prefiro lembrar aqui de um episódio em que, na fila de uma consulta médica pediátrica, encontrei um senhor bonachão assistindo a um militar em seu celular pregando movimentos golpistas contra o Superior Tribunal Federal em sua conta no Youtube lá pelos idos 2018. Qual seria a possibilidade de um militar encampar, em rede nacional, um discurso do tipo em um modelo de comunicação centralizada nos veículos tradicionais? Como chegaria com essa mensagens a tantos, potencialmente? Praticamente nenhuma.

No entanto, como no mundo quase nada se explica pela simplicidade, temos que considerar que o poder de agendamento da grande imprensa também acaba passando por significativos processos de transformação em que personagens e debates públicos nas redes digitais acabam por pautar a imprensa tradicional. Em momentos de militância e perseguições políticas, então, uma mensagem militar postada em uma conta no Twitter pode ganhar reverberações significativas e produzir efeitos bastante concretos sobre o destino de um país. Que o digam o general Eduardo Villas-Bôas e o jornalista William Bonner.

O fato é que o reingresso de militares na esfera pública política brasileira não tem se dado apenas nos bastidores e mesmo sob os holofotes da política institucional, mas no campo da comunicação ampliada, alargada pelas redes sociais. E, obviamente, é preciso considerar as forças de segurança levando em conta os nossos policiais que também são militares. Um levantamento preliminar para um projeto de pesquisa em desenvolvimento que estou tocando já conta com quase 800 perfis de militares só no Twitter. A mera constatação quantitativa já é denotativa do grau de inserção dos militares como agentes do debate público político brasileiro. Não é mera coincidência que general empareda o STF usando o Twitter e a proporção de policiais militares eleitos triplicou entre 2010 e 2018, segundo o site da Piauí.

As possibilidades de comunicação ampliada, pública, mas também interna, são veículos profícuos de produção e disseminação de ideias, de conformações de ideologias, de formação de climas de opinião e de organização com grande potencial de subversão das lógicas distintivas da vida pública.

Se a comunicação digital promoveu uma ampliação do grau de inserção de indivíduos e grupos sociais no debate público, com vantagens e enormes desvantagens (eis os paradoxos da participação política), os militares têm sido uma das forças políticas destacadas e que merecem muito mais atenção nesse novo cenário de disputas políticas sob nossa para lá de cambaleante democracia. Com implicações que podem ser significativas para os pilares constitucionais da disciplina e da hierarquia das Forças Armadas e para a saúde da democracia brasileira.

Se nunca tivemos uma barreira devidamente liberal de separação do poder militar da política e do poder civil, temos agora mais um elemento de reforço do apagamento dessa divisória necessária ao Estado de Direito: a comunicação pública e digital tem tornado cada vez mais público e civil aquilo que deveria ser reservado ao território institucional das forças militares. Eis mais um dos desafios dos democratas que ainda restam neste País. E se trata de um desafio que perpassa, fundamentalmente, pela comunicação.

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