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A chacota de mulheres negras nas redes sociais

É necessária reflexão e denúncia a práticas neocoloniais

DOROTHY COUNTS, UMA DAS PRIMEIRAS ALUNAS NEGRAS A FREQUENTAR A ESCOLA NOS EUA
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Mfumu-dikânda n’tu a mbwa watôndila makome.

O líder da comunidade é uma cabeça de cão; todos batem nela. Só se cospe no líder. Um verdadeiro líder é objeto de críticas.

– Fu-Kiau traduzido por Tiganá Santana

A intelectualidade das mulheres negras independe da credencial acadêmica, por isso o feminismo negro favorece a escrita engajada, em primeira pessoa, que desobedece a racionalidade ocidental, demarca responsabilidade discursiva e conhecimento situado. Sendo assim, menciono logo a condição de pesquisadora que usa o ciberativismo para partilhar autorias negras, denunciar colonialidades e oportunamente oferecer fragmentos do Pensamento Feminista Negro – um clássico da teórica afroestadunidense Patrícia Hill Collins.

Premiadíssima Griô, aos 71 anos, recomenda às mulheres negras combaterem as imagens de controle de “cadelas materialistas,” quando não raro, exigem dos homens negros provas cabais da condição financeira hegemônica a despeito deles, no capitalismo global, não estarem nos postos do alto escalão, por exemplo. Conforme aconselha, os homens negros precisam sim combater a reprodução da violência de gênero contra companheiras, irmãs, irmãos e filhas. Quando chamamos atenção à problemática, estamos resgatando o paradigma da afrocentricidade – chão político do pensamento feminista negro.

E lembramos das palavras do Dr. Molefe Kete Asante ao reconhecer como a experiência da escravização, colonialismo e neocolonialismo nos afastou e afasta uns do outros, de modo que reproduzimos as práticas violentas da Europa.

A saber, as trocas políticas sobre o fragmento de Patricia Hill Collins compartilhado em minha rede social trouxeram maciça participação respeitosa, estritamente no campo das ideias, partidas de ativistas masculinos interessados nas referências bibliográficas. Todavia, na contramão da afrocentricidade, um grupo de jovens negros, intitulado pan-africanista, engatou a articulação de ataques, e, em seguida, sucederam-se memes, reações de zombaria, convocação de “eguns”, ridicularizações saídas dali e continuadas no grupo do virtual “quilomboche,” alusivo ao deboche previsto contra feministas negras.

Insisto na reflexão sobre práticas neocoloniais, uma vez que ser vítima de ataques sucessivos e escárnio particularmente trouxeram agravos na minha saúde mental e assegurou renovação da licença médica, em curso, por mais 60 (sessenta dias). O prejuízo político é incalculável, tendo em vista que minha atuação profissional na rede pública é de prestação de atendimento psicossocial à comunidade negra, a exemplo dos homens negros que tentam suicídio mediante o desemprego ou têm desalinho com uso de substâncias, bem como à assistência social das mulheres, em suma negras, para lidarem com vulnerabilidades estruturais dos territórios suburbanos. Estas pessoas serão prejudicadas pela ausência da instrumentalidade técnica e da sensibilidade analítica e ancestral das minhas abordagens. Ficarão descobertas da militância profissional centenas de vítimas de violências sexuais, domésticas e geracionais, pois eu combato a institucionalidade do racismo: notifico, acolho e encaminho às redes integradas de proteção.

E a tal da chacota? Do ponto de vista etimológico e morfossintático a palavra “chacota” não resguarda quaisquer conotação africana. Pelo contrário. A chave literária é branca, portuguesa e remete a corrente trovadoresca, ainda do século XVI. O dicionário medieval define como zombaria cuja finalidade é a humilhação. A historiografia prova que as africanas, como Sara Bartmam, viraram atração de circos europeus através da exposição desumanizante da corpografia, e mesmo depois de morta as genitálias da apelidada Vênus Hotentote continuaram atendendo aos deboches do Ocidente.

A sensação psíquica deixada para nós, mulheres negras, submetidas as tais expedientes do ridículo são profundamente dolorosas, ainda mais partidas duma juventude negra em desconexão do tempo em que se havia formação política disposta por organizações antir-racistas como MNU- Movimento Negro Unificado, ENJUNE- Encontro Nacional de Juventude Negra, CONNEB- Congresso Nacional de Negras e Negros, UNEGRO- União dos Negros pela Igualdade, CEN- Coletivo de Entidades Negras, CNNC- Conselho Nacional de Negras e Negros Cristão, Circulo Palmarino, dentre inúmeras organizações mistas. Infelizmente, o caminho dessa geração acrítica ofende nossas ancestrais, e tocam a memória coletiva de tantas de nós que foram humilhadas publicamente, como a escritora Carolina Maria de Jesus, vítima do aviltamento da intelectualidade esculhambada pela própria comunidade, devido a visibilidade de uma mulher negra ofender o resto da favela provocando inveja por parte dos homens.

É sabido que a Igreja Universal participa até hoje da inferiorização espiritual africana, chegou a ser condenada por violências racistas, misóginas e estéticas contra a Iyalorisà Gilda de Ogum, levando a presença física desta à morte. É difícil de esquecer a publicação da fotografia, em 1999, sob o título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Agora, sobre a conduta juvenil dita pan-africanista nas redes sociais, Lázaro Castro Erê, vocalista do Opanijé, grupo de rap conhecido pelas músicas de consagração da ancestralidade, diz: “Estamos vivendo a primeira geração de adultos filhos do boom neopentecostal e isso é grave. Eles rompem com a estrutura da igreja, mas não abandonam as práticas de violência psicológica que elas ensinam. Eu vi o que eles fizeram. Vergonhoso aquilo…”.

Apresso-me a chamar de “sexismo recreativo”, quando exclusivamente é a imagem de mulher negra usada para fins de depreciação e adoecimento psíquico.

Geralmente os racistas usam intelectuais comuns, donas de casa desdentadas, trabalhadoras simples visando estampar a desumanização moderna. Por sua vez, a política de segurança pública brasileira, pelo caráter racista, cria catálogos com imagens de pessoas negras, imprimindo a perseguição colonial nas favelas e terror provocado pela circulação das imagens nos whatsapps.

Ora, o Doutor Adilson Moreira conceituou racismo recreativo como a política da hostilidade bem-humorada das minorias raciais. Trata-se de piada reprovada politicamente, e no caso das mulheres, havemos de considerar o teor racista patriarcal direcionado às mulheres negras em geral. Quando os agentes são homens negros, tais práticas estão destinadas à deslegitimação das intelectuais acadêmicas, porque, assim como Carolina Maria de Jesus, não deveriam publicizar os seus respectivos lugares de fala.

O pior disso é a ofensa promovida contra a divindade cabeça, cultuada na ancestralidade africana, porque nela abrigamos toda a espiritualidade subjugada pelo racismo escravocrata. Osum, por exemplo, gosta de graciosidade, não de zombaria. Até mesmo os erês têm a hora certa de manifestar os conteúdos psíquicos dos indivíduos carregados pelas deidades.

Print de “chacota” a mulheres negras nas redes sociais.

Acredito que por traumas coloniais alguns pan-africanistas manifestam o lado infantil dos comportamentos políticos, através da consagração do “eu criança eternamente.”

Creio que Abdias Nascimento, grande amigo pan-africanista, parceiro intelectual e de dobradinhas político partidárias de Lélia Gonzalez, feminista negra, deve estar, no mínimo triste com a penetração do colonialismo nas experiências de ódio, humilhação e desprezo de mulheres negras. Fica difícil acreditar no Quilombismo se a proposta de mobilização negra dos meninos pan-africanistas têm investido mais dedicação hermética e menos atuação orgânica, séria, africanizada na diáspora.

Em julho de 2019 as discussões sobre cyberbullying voltaram aos assuntos mais comentados nas redes sociais, chamando atenção para “diva da Oakley.” Estamos falando de “Debóra” jovem negra de quinze anos e considerava feia pela identidade. Ela sofreu hostilização na internet por cinco anos, afetando sua autoestima, e não conseguia encarar o espelho. Tomou remédios e adoeceu a família inteira. Quase sempre os memes contra pensadoras negras buscam afetar a família, possivelmente com vistas a enfraquecer os laços de afeto.

Inseparado, a meu ver, racismo-sexismo, tomo emprestadas as elaborações de Adilson Moreira, porque as intelectuais negras passaram a ser chamadas de lacradoras, divas, em tom pejorativo. Sempre através das “microagressões” sexistas de raça e ataques coletivos contra figuras intelectualmente expoentes.

Por último, trago a filósofa Sueli Carneiro no debate sobre raça, gênero e ascensão social. A intelectual acredita na mesmice de homens brancos e homens negros no tocante ao machismo, porque quando os homens negros ascendem socialmente, transformam as mulheres brancas e mulheres negras em mercadorias dos seus desejos. Análogos, jovens pan-africanistas por se acharem famosos na rede social, usam de expedientes idênticos ao homens brancos, e circulam as mulheres negras ou brancas como objetos de suposto tesão político, mas, desvalorizam preferencialmente as mulheres negras. Estimam-se que mais de cinquenta cinco ativistas negras tenham cancelado a conta temporariamente após tais comportamentos masculinos.

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