Opinião

A atualidade no Brasil, no Afeganistão e no Haiti tem muito a nos dizer

E ela requer ser interpretada

Membros do Taleban nas ruas de Cabul, capital do Afeganistão. Foto: Wakil Kohsar/AFP
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“Se el-rei permitir que eu jure falso, deixará o juramento de ser pecado? Se el-rei permitir que eu furte, deixará o furto de ser pecado? O mesmo se passa nos índios. El-rei poderá mandar que os cativos sejam livres; mas que os livres sejam cativos não chega lá sua jurisdição.”
Padre Antônio Vieira.

Na semana passada, assistimos à belíssima mobilização dos indígenas brasileiros pela rejeição, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), do “marco temporal”, tese esposada pelos que pretendem apropriar-se das terras indígenas não reconhecidas como tais antes da promulgação da Constituição de 1988.

Ora, sabemos que, com exceção do Marechal Rondon e poucos mais, (1) os militares brasileiros deram escassa atenção ao tema da demarcação das terras indígenas e (2) que a Constituição de 1988 justamente fora promulgada após 21 anos de ditadura militar, durante os quais os crimes perpetrados contra as comunidades indígenas foram inumeráveis e atrozes.

Com as manifestações deles, os habitantes originários recordam que os negócios não estão acima do bem comum, da ética e da consciência.

 

Nesse sentido, completa Vieira, no antes citado sermão da primeira dominga da Quaresma, pronunciado no púlpito de São Luiz do Maranhão: “Saiba o mundo que ainda há verdade…que ainda há alma, que ainda há consciência, e que não é o interesse tão absoluto e tão universal senhor de tudo, como se cuida.”

Na Bíblia, conjunto de livros arquetípicos da cultura humana, vemos que no livro do Gênesis, atribuído a Moisés, a morte de Caim por Abel recebe como punição divina a errância eterna. Ao contrário, a morte do egípcio opressor do povo judeu pelo próprio Moisés levou-o à libertação de seu povo do cativeiro – para isso, falando face à face com Deus – conduzindo à terra prometida.

A luta pela liberdade é, dessa forma, claramente sancionada pela evolução humana, a ponto de o pecado capital, a morte, ser admitida, quando se tratar do opressor, da libertação do cativeiro, da defesa da própria terra.

A recepção do Papa Francisco aos indígenas brasileiros, em Roma, no dia agendado para o julgamento no STF não poderia ter sido mais simbólica.

Em Mayombe, romance do angolano Pepetela, prêmio Camões 1997, editado no Brasil pela Leya, os combatentes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), discutem sobre o futuro exército do país, uma vez liberto: “-E quem vai ser oficial, então? Esses que formam no exército tuga [como se referiam aos portugueses], sem formação política, que um dia tentarão dar um golpe de Estado? Que depois da independência haja golpes de estado todos os anos, como nos outros países africanos? Precisamos de um exército bem politizado, com quadros saídos da luta de libertação.”

Assistindo a um vídeo de Noam Chomsky, lembrei dessa passagem. O cientista estadunidense, com muita propriedade, recorda que previra, há mais de dois meses a queda do governo afegão e a ascensão do Taleban.

Com efeito, qualquer embaixada decente é capaz de antever, com alguma precisão, esse tipo de acontecimento político. Para isso lá estão, sendo devidamente pagos.

Para isso, basta uma estrutura pequena, com no máximo três diplomatas e um total de servidores não superior a 20 pessoas.

A embaixada estadunidense deveria ter bem mais de uma centena de diplomatas e milhares de funcionários administrativos. Junte-se a eles os milhares de militares das três armas lá estacionados, com os respectivos serviços de inteligência. Somem-se, ainda, as demais missões diplomáticas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), suas forças e serviços de inteligência (num total bem superior às tropas do faraó do Egito que tentaram impedir o êxodo dos judeus cativos).

Como essa massa de cérebros, olhos e ouvidos não previu o que aconteceria? Impossível que não tenham previsto – a única resposta sensata.

Por quê não o disseram? É a pergunta que se segue, forçosamente.

Certamente, pela limitada capacidade de análise política; incapacidade de comunicar aos civis o que viam e ouviam em campo; e limitação na participação dos objetivos traçados para a missão.

Ou seja, viam, mais não podiam julgar; agiam, mas sem entender a motivação das ações e as consequências delas. Um resultado do fordismo alienante e hiperespecializante? Talvez.

O resultado é uma infidelidade à missão, às demandas da população local e ao poder civil e cidadão, de quem, em última instância, receberam o mandato e ao qual devem render contas.

Desastre semelhante pode ser visto no Haiti, após tantas invasões, algumas autorizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU).

No último terremoto, 2.207 mortos; 12.268 feridos e 344 desaparecidos, números ainda incompletos.

No entanto, esse é um povo capaz de virar a noite nas filas de alistamento eleitoral, tal a sua percepção de que só a política modifica a vida de um povo. Pois a política, sempre nas palavras do Papa Francisco, é a forma superior da caridade. E a caridade, segundo São Paulo, supera toda e qualquer virtude.

A atualidade no Brasil, no Afeganistão e no Haiti tem muito a nos dizer. Requer ser interpretada.

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