Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

A aposta no dissenso

Uma das características do bolsonarismo – visto como a representação do novo regime – é a recusa a qualquer forma de composição

Câmara dos Deputados (Foto: Agência Brasil)
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No Brasil, o pluripartidarismo – visto pela média dos comentaristas como fonte de todas as crises (o que é um erro) – ensejou o chamado ‘presidencialismo de coalizão”, aquele no qual o chefe do executivo, entre nós uma figura ainda quase imperial, é obrigado a negociar com as forças representadas no Congresso para poder governar. A negociação, uma prática essencial nos regimes democráticos, relembre-se, é aí indicada como estorvo, por reduzir a liberdade de ação do presidente da República. Mas o que se conhece como obstáculo à governabilidade – principalmente em regime no qual frequentam o Congresso mais de 30 siglas e um sem número de bancadas super-partidárias (boi, bala, bíblia… ) – também deve ser visto como antígeno à tendência imperial-autoritária do presidencialismo, qual o conhecemos e praticamos, ao impedir que a mesma força partidária controle, a um só tempo, Poder Executivo e Poder Legislativo, o que, na história republicana posterior à democratização de 1946, só se observou na ditadura, a cujo mando também não escapou o Judiciário.

Se não é certo que o presidencialismo de coalizão concorre necessariamente para obstaculizar a governabilidade, como o atestam as administrações Eurico Dutra e JK, a história também demonstra a inviabilidade daqueles governos que, ora não conseguiram ou foram impedidos de compor coalizões (Getúlio Vargas  e João Goulart) ora a elas se negaram (Jânio Quadros e Fernando Collor). À ditadura do partido do presidente, a coalizão enseja o diálogo, a representação e a composição de interesses. Nesse sentido também pode funcionar como fator de estabilidade institucional.

Uma das características do bolsonarismo – visto como a representação do novo regime – é a recusa a qualquer forma de composição, pois se nutre, como projeto estratégico, na radicalização do dissenso, donde a rejeição ao presidencialismo de coalizão que subtende o diálogo com o diverso e o divergente, ou seja, a negociação política, que não deve ser confundida com traficância.

O acirramento e a instabilidade política são método que visam à manutenção do poder, e não meramente a governar.

No presidencialismo de coalizão o presidente governa de dentro para fora, estabelecendo o diálogo entre a instância política e as forças sociais. Autoritário desde a gênese, o capitão manobra de fora para dentro, condicionando os demais Poderes, acossando-os, não a partir da horizontalização do apoio popular, mas da verticalização deste, falando à sua massa de apoio original, que o elegeu e que a ele (ainda) permanece fiel. Pois que não lhe interessa o entendimento nacional.

Essa visão e essa prática política não o têm impedido de, em meio a variadas e secundárias querelas com o Poder Legislativo, obter vitórias significativas, como a aprovação da antipopular ‘reforma’ da Previdência, pois nas questões cruciais o sistema associa, ao que comumente se identifica como ‘bolsonarismo’, o apoio do dito ‘mercado’, da mídia corporativa (com seu plantel uníssono de comentaristas) e de seus despachantes com mandato, pressionando o Legislativo, de novo, de fora para dentro. Nesses termos, a aprovação da “reforma” foi conquista do ‘mercado’, imposta de fora para dentro do Congresso, pelos agentes econômicos, à frente de todos o sistema financeiro, independentemente do capitão, nada obstante a “pauta Guedes”, exigência do sistema para embarcar na sua aventura.

Nem os projetos aparentemente secundários perdidos (posse de armas, retirada de radares das estradas federais, transferência da Funai para o Ministério da Agricultura, etc.) nem os aparentemente cruciais (a reforma da previdência e as privatizações a que se devota  o ‘mercado’), parece estarem no centro das preocupações do capitão, de índole irresponsavelmente autoritária e populista, portanto sem menor respeito aos ritos democráticos e sem qualquer reverência às instituições republicanas – pois sua estratégia consiste, justamente, em agir por fora desses cânones.

À tranquilidade operativa do presidencialismo de coalizão, às vezes semelhando caos político e ético, aquilo que podemos, simplificadamente, identificar como “bolsonarismo” opta pela turbulência das maiorias ocasionais transacionadas, caso a caso, como se acaba de ver nas negociações que levaram à dispendiosa aprovação da impopular reforma da Previdência pública, ainda por pagar-se.

Na contracorrente da coalizão, o governo do novo regime é parlamentarmente minoritário, mas é no Congresso, porém, que a direita, desde o impeachment, coleciona vitórias: reforma trabalhista, teto dos gastos públicos, limite dos gastos sociais, fim do imposto sindical etc. O presidente do novo regime é minoritário, não por força das contingências, mas por opção estratégica, pois almeja o confronto e não rejeita mesmo, como seu preço, a instabilidade politica que em algum momento chegou a preocupar o estado-maior do regime.

Não é original nesse ofício, conta-nos a História, e resta torcer para que, mais uma vez, com outras consequências, o feitiço caia sobre o feiticeiro.

Por tudo isso o capitão não parece abespinhado com o protagonismo do Congresso, a fazer-lhe sombra, como canta  em prosa e verso a imprensa.  Com sua omissão, e principalmente com sua ativa prática da tergiversação, parece mesmo estimulá-lo – atribuindo-lhe não o mérito das conquistas levadas a cabo à margem do Planalto, mas culpando-o, junto ao seu eleitorado, quando promessas de campanha caem por terra. Quanto mais assim for, mais terá argumento para justificar-se junto ao núcleo de sustentação, como dissesse: -“Eu pedi ao Congresso, como prometi, mas ele negou”. Sobre o projeto da Previdência declarou, quando o mercado cobrava seu engajamento na defesa da proposta: – “Fiz minha parte, mandei o projeto; agora é com o Congresso”.

Repito o que já escrevi neste espaço: jamais por loucura, e inegavelmente por método, o capitão acirra o esgarçamento social e estimula o ódio, investe na desconstrução do pacto nacional e promove o conflito, pois se de tais sentimentos dependeu sua eleição, deles igualmente depende seu projeto político daqui para a frente.

Não hesitará em palmilhar o autoritarismo se essa via se oferecer factível, e sempre haverá um general Heleno disposto a abrir-lhe caminho. E, cuidemos, o campo é propício para aventuras, quando a realidade do processo político-social escancara a fragilidade do sistema de partidos, reduzidos, ressalvadas algumas poucas exceções, a um aglomerado de siglas sem consistência ideológica ou política ou programática, enfim, sem enraizamento social ou representação política, vigendo à margem de um movimento social em crise que se completa, no refluxo da vida sindical. Como pano de fundo o sono cívico das organizações da sociedade civil que tanto nos orgulharam na luta contra o regime militar,  governos estaduais e municipais falidos e dependentes do poder central até para honrar a folhas de pagamento do funcionalismo. O poder que sobreleva (e a aprovação da “reforma” é vitória sua) é o sistema financeiro em país que se desindustrializa e renuncia ao desenvolvimento e à independência.

Este é um outro lado a nos dizer que nem tudo são necessariamente flores na caminhada do capitão, posto que não há garantias de que a mobilização permanente seja suficiente para anestesiar a crise social, consequência incontornável de um governo que desfaz sonhos e perspectivas, adiando o futuro; uma economia que se afasta do reaquecimento e se aproxima da recessão, com a promessa de mais desemprego e queda de renda dos assalariados, isso em país que já ostenta uma das mais obscenas desigualdades sociais do planeta.

O cenário não está completo porque falta registrar a expectativa da presença do movimento social que pode mudar a correlação de forças.

De Pujol a Ramos – Em longo discurso na despedida do general Luiz Eduardo Ramos da chefia do II Exército, o comandante da corporação, general Leal Pujol, descreve a vida profissional do novo ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República. O panegírico, talvez refletindo o viés ideológico do homenageante, desvela um currículo político-policial, pontilhado de ações administrativas. Nenhuma linha é dedicada à construção de uma Força de Defesa Nacional por aquele general que ao cabo de variadas missões, inclusive internacionais, comandou a mais importante unidade militar do país.

Vazio – A mídia brasileira – que quase invadiu a Venezuela – faz estardalhaço tremendo quando o clima político esquenta no país vizinho . É curioso como a atenção cai quando governo e oposição sentam para negociar. Por que tão pouco interesse pelas negociações que estão ocorrendo em Barbados, sob os auspícios da distante Noruega?

A pergunta que não pode calar – Quem mandou matar Marielle? Quando saberemos?

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