Talitha Haia

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Médica, escritora e mestre em psicanálise pela Sorbonne em Paris

Opinião

500 mil mortos e milhões de lutos

Na partida de alguém que morre, algo dos que se mantêm vivos vai junto

Em Manaus, pessoas se despedem de um familiar perdido para o coronavírus. Foto: Michael DANTAS/AFP
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Confesso que quando ouvia QUINHENTOS MIL, isso me fazia pensar em dinheiro. Em um prêmio do Big Brother Brasil, lá no começo. Hoje, conhecendo a nova estatística de 500 mil mortos pela pandemia, minha cabeça ainda não consegue associar tantos nomes, corpos, histórias a um número tão maciço – que parece uma soma, mas que, na carne, é subtração. Como se contabiliza tantas vidas partidas, que se multiplicam nas memórias enlutadas?

O Brasil tem uma dívida impagável com a vida. Por escolher vencedor das eleições um bufão, ganhamos um prêmio ao contrário.

Essa marca me faz pensar no filme Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos. O longa-metragem documental de Marcelo Masagão, ao falar de mortos em contextos de numerosas perdas pela guerra, dá nome aos números. Masagão se refere aos mortos, por exemplo, como alguém que “Fazia bolinhos de arroz como ninguém” ou “Um exímio carteiro”. De alguma maneira, isso dignifica as pequenas grandes histórias, que não cabem em uma conta massiva. A arte mostra que as pessoas não vivem apenas de matemática, números e placas. Precisamos das palavras para dar conta da vida, sobretudo quando a morte nos esbarra.

Os 500 mil, então, não são mais o prêmio em dinheiro da infância, mas um número com adjetivos e nomes próprios. É um número triste, enraivado, político, criminoso, é Marias, Joãos, Josés, Fernandas, Amandas, Pedros, Andrés, Anas. É avô, vózinhas, tias, mãe, pai, filhos, irmãos, sobrinhos, namorado, marido, mulher, amiga, inimigo, vegetarianos, diabéticos, hipertensos, esportistas, conhecidos, artistas, médicos, pacientes, enfermeiros, padeiros, desempregados, ricos, advogados, presos, aposentados, alunos, professores, amantes de arroz com feijão, picanha, café da manhã, literatura, futebol, banho de mar, chimarrão, sol no final do dia, gole de água, descanso depois do trabalho, cerveja gelada, trabalho para sustentar a si ou a família, amores de alguém ou de ninguém. São lembranças infinitas de 500 mil vidas perdidas.

Mas ninguém morre sozinho, o substantivo vida está sempre em relação com um desejo. Todos conhecemos o sentimento de solidão, mas nenhuma pessoa vive só. E é também no plural que morremos. Logo, esse MEIO MILHÃO de mortes reverbera em MILHÕES de existências enlutadas. Na partida de alguém que morre, algo dos que se mantêm vivos vai junto. Por isso, há o luto.

O número que acompanha o nome do vírus também marcou uma data, o dia 19 de junho. É um caso explícito da transformação simbólica da palavra luto em luta, e agora também de um número. Foi o dia em que milhares de pessoas, em todo o mundo, foram às ruas para protestar contra a necropolítica, contra um presidente dissimulado (mas sem máscara), contra um presidente que não se identifica com a palavra gente e não honra o seu cargo.

Portanto, essa foi a manifestação de uma massa viva que atribui valor ao humano, que se apropria de suas perdas, palavras, números e ressignifica a opressão com o grito Fora, Bolsonaro! Nessa casa você está sendo vigiado, e não é bem vindo. Antes mesmo do paredão, já foi eliminado. Seguiremos vivos.

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