30 anos da queda do Muro de Berlim: um relato pessoal

Quando cheguei a Berlim, o muro já havia se tornado atração turística que instigava o voyeurismo

Muro de Berlim (Foto: Fátima Lacerda /Arquivo pessoal)

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Cheguei em Berlim em 1988 a bordo de um avião da PanAm (somente as forças aliadas podiam voar sobre Berlim) numa tarde de alto verão de temperatura marcando 33 graus. Já nos primeiros quilômetros da viagem de carro para onde seria meu primeiro endereço, a brisa que entrava pela janela era mais do que um efeito colateral do verão. Era o início de novos tempos, novos horizontes e o meu primeiro momento de Freiheit, significado do qual eu viria, mais tarde, da maneira mais existencialista e humanista possível, entender.

Em 1988 a cidade acabara de completar, no ano anterior, o aniversário de 750 anos com eventos memoráveis dos dois lados da Cortina de Ferro, competindo quem oferece a melhor programação. Havia disputa pelo protagonismo enquanto visualizavam o capital político que poderia ser retirado da empreitada em organizar a festa de aniversário que ratificaria a importância cultural e política das duas Berlins.

A parte oriental tinha que correr atrás do prejuízo, já que comunidade internacional não a reconhecia como capital da RDA. Era preciso usar a oportunidade de sair da isolação.

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Berlim Ocidental, por sua vez, queria mostrar que, apesar do muro, a cidade era vibrante polo cultural.

Ousando o imprevisível, o regime da RDA começou a permitir em 1987, shows de artistas do ocidente, algo anteriormente, proibido. O show da banda Pink Floyd e do inglês Joe Cocker marcaram o início de uma política para conquistar os jovens da FDJ, associação de pioneirismo e da qual ser membro, era obrigatório. A pequena fresta de uma porta de um sistema com visíveis traços de ferrugem, resultou em janelas escancaradas com a juventude pioneira vestindo camisas com a bandeira dos EUA e cantando “Born in the USA” com todo o ímpeto, no show histórico de Bruce Springsteen, que fez questão de tocar em Berlim Oriental, detém o recorde de maior show de toda a história da Alemanha Oriental.


Para não dar bandeira, o governo da RDA divulgou o show como comemoração do aniversário de 9 anos da Revolução Sandinista, sem que Springsteen e seu empresário, Jon Landau, soubessem. Pouco antes do show, já ciente do plano, foi o próprio empresário que determinou a retirada dos cartazes. Historiadores veem esse show como um grande passo em direção à derrubada do muro. Essa tese é ratificada também pelo jornalista americano, Erik Kirschbaum em livro publicado em 2013: Rocking The Wall, the concert that changed the world. Também o historiador Gerd Dietrick, da Universidade Humboldt, defende a tese: “O discurso e show de Springsteen tiveram grande participação nos acontecimentos que levaram à queda do muro”.

Em torno do muro como concreto no espaço urbano, haviam muitas lendas, histórias não confirmadas e se falava-se baixo ao andar ao longo dos pontos de fronteira ou ao longo da linha do muro, chamada popularmente de “Todesstreifen” (faixas da morte).

No ponto de controle de fronteira de maior prestigio, o Checkpoint Charlie, soldados soviéticos e americanos ficavam frente a frente, todos os dias, separados por uma fronteira ideológica. O iminente perigo do estourar da III Guerra Mundial, logo ali, era palpável e onipresente em solos berlinenses. Vivia-se em estado de receio constante no solo mais complexo do mundo: dividido, demarcado e cheio de feridas abertas.

Quando cheguei a Berlim, o muro já havia se tornado atração turística que instigava o voyeurismo, ratificado pelas torres de madeira, disponibilizadas pela prefeitura de Berlim Ocidental para avistar o outro lado e seu campo minado para evitar fugas.

Para os berlinenses do lado ocidental, o muro era uma mancha de sangue na história alemã, mas se optava pela vista grossa para viver na cidade cercada por aquele concreto de 4m, justificado como “Parede-Proteção-Anti-Imperialista” (em tradução livre) e construído para durar 100 anos ou “até que o motivo para a sua construção se extinguisse”, segundo Erich Honecker, responsável por toda a logística e denominado “arquiteto” do muro.

Encontros no muro

Deparei com todos os diferentes perfis e backgrounds, mas que se uniam na busca por uma vida sem amarras, convenções em solo fértil de subcultura subversiva num contexto de grande complexidade política e convulsão urbana. Todos esses fatores, Berlim oferecia, nos final dos anos 80.

O status geográfico-político de ilha fincada em terreno soviético, cercada pelo muro e pertencente ao território “externo” da Alemanha Ocidental injetavam no cenário urbano de Berlim visceral sede do exercício da liberdade, solo que seduziu, como um imã, artistas, pacifistas fugindo da obrigatoriedade do serviço militar e encontrando abrigo na zona desmilitarizada que era Berlim. Refugiados políticos e desgarrados de todas as partes do mundo assim como artistas que fugiam dos holofotes como David Bowie e Iggy Pop encontraram seus sonhos e anseios em Berlim.

Quando ali cheguei, encontrei a maior diversidade em pessoas e biografias ao mesmo tempo que unidas pela mesma sede, pela mesma vontade, à procura de liberdade de ser e estar. Tudo o que procurava, estava ali.

Teimosia na resistência

Dia 9 de novembro comemora-se o aniversário de 30 anos da derrubada da Cortina de Ferro. Desde os anos de 1987/88, quase tudo mudou, mas a cidade marrenta não perdeu sua essência política, nem sua veia cultural como teima em manter as características dos bairros e as de cidade-estado, mesmo enquanto capital da República.

Não poderia ser mais irônico que até mesmo o Aeroporto de Tegel, inaugurado em 1948 e que já era para ter sido fechado em junho de 2012, mas que por vários fracassos dos especialistas instalar um mecanismo contra-incêndio no Aeroporto Internacional que ainda não foi inaugurado, acabasse se tornando exemplo de resistência nada intencional, remetendo aos tempos de outrora.

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