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Terremotos na Califórnia advertem: seria o Big One chegando?

Os últimos tremores de terra alertam para o perigo à flor da pele; os californianos aparentemente não se amedrontam

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Uma cicatriz corta a Califórnia de alto a baixo, por 1,2 mil quilômetros de extensão. De San Bernardino, ao sul, a São Francisco, ao norte, o viajante que envereda pela Highway 1, a rodovia que ziguezagueia pela costa do Pacífico em cenários tão deslumbrantes que o cinema nunca despreza, será alertado mais de uma vez por cartazes convidando a uma intimidante atração turística: “This is the way to San Andreas Fault”.

Não assusta nem um pouco aquela faixa de terreno baldio que lembra uma banal erosão, no entanto, a cada vez que a Califórnia se sacoleja por culpa de algum abalo mais forte, como aconteceu, em dose dupla, na primeira semana de julho, a Falha de San Andreas volta a ser a sinistra estrela do noticiário, trazendo em sua companhia o espectro do Big One – o terremoto com poder de juízo final, aquele que fatalmente vai rasgar a cicatriz e jogar ao mar todo um volumoso naco do litoral do estado.

A Falha de San Andreas delimita a fronteira geológica entre a placa tectônica norte-americana e a do Pacífico, sempre sujeitas, as duas, a entrechoques e acomodações bastante turbulentas. Quem a revelou foi um geólogo de nome Andrew Lawson, em 1895, mas ninguém deu muita bola, até que o mortífero terremoto de São Francisco, em 1906, obrigou os cientistas a investigarem a relação entre os tremores e aquele veio de terrenos erodidos.

Os sustos presentes e os medos futuros não intimidam mais metrópoles como Los Angeles e São Francisco (foto) a investir na vertigem dos arranha-céus (Foto: Istockphoto)

São Francisco será tragada pelo Pacífico, e não falta quem veja aí um quê de punição bíblica contra uma Sodoma que se excedeu na liberalização dos costumes, cidade que acolhe uma musculosa comunidade gay e que tem ojeriza pelo preconceito, a homofobia e a xenofobia. Sempre que um alienígena menciona São Francisco traz no subtexto a letra daquele velho hit recomendando: se você vem a São Francisco, não esqueça de usar flores no cabelo. Na verdade, o Flower Power ficou no passado, embora os locais se orgulhem de uma virtude semelhante. Dizem-se laid back – desencanados.

Você não encontrará ali ninguém preocupado com o Big One, ainda que ninguém negue que a probabilidade de que aconteça é absolutamente matemática – algum dia. Nisso os San Franciscans se assemelham aos napolitanos, que acordam e vão dormir tranquilos com o Vesúvio dando suas baforadas, lá no fundo da baía, assim como os moradores das encostas do Etna, na Sicília, dispostos a desafiar os maus bofes de um vulcão ativo em troca do benefício da lava nos vinhedos e na plantação de tomates. Gente que não faz conta para o futuro, vive corajosamente o presente.

 

Os sustos presentes e os medos futuros não intimidam mais metrópoles como Los Angeles e São Francisco a investir na vertigem dos arranha-céus. Com base numa tecnologia segura, que os japoneses criaram e vêm aperfeiçoando e que explica hoje em dia o destemor vertical de Tóquio, por exemplo, prédios escarpados desenham o skyline de cidades de risco, antes condenadas ao cenário uniforme de casinhas rasteiras.

Este repórter, quando correspondente de CartaCapital na Califórnia, acompanhou a construção de um edifício de 25 andares no início do bairro italiano de North Beach, em São Francisco, a uma quadra do mimoso prediozinho gótico da Zoetrope, de Francis Ford Coppola. Intrigou, de cara, a profundidade do alicerce. “Vocês querem cavar até a China?”, perguntei. O engenheiro de origem chinesa não entendeu. A tecnologia é, sempre, japonesa, mas na São Francisco das quatro Chinatown a construtora tem grande chance de ser chinesa.

Trecho da Freeway de Okland ruiu e matou 63 pessoas no tremor de 1989 (Foto: Mark Richards/ Zumapress.com)

Escavado o abismo dantesco, apto a abrigar todos os círculos do Inferno, a obra do arranha-céu consiste em preencher o buraco com um vigoroso bloco de concreto, sobre o qual o edifício vai se fixar. Uma folga é deixada de cada um dos quatro lados. É como se fosse um xaxim para acolher a planta. A fresta das laterais, como aquela que as pontes requerem, faz com que o prédio oscile, para lá e para cá, em caso de sismo, mas não rache. “E se for o Big One?” O engenheiro chinês não respondeu, mas produziu uma expressão que traduzi como: “Aí, danou-se”.

A coisa mais parecida com o Big One, desde que um time de geólogos da Universidade de Berkeley previu sua inevitabilidade, por volta de 1953, foi o terremoto de 1989, batizado de Loma Prieta, seu epicentro. Sua magnitude – de 6,9 pontos na Escala Richter, igual ao do abalo sem vítimas de quinta-feira 4, e menor que o tremor de 7,1 da sexta-feira seguinte – não explica por si só o desastre que provocou.

Era um dia tranquilo na Bay Area, 17 de outubro, 5h04 da tarde, as pessoas esperavam, diante da tevê, o início da terceira partida da final da temporada de beisebol, por coincidência disputada entre os vizinhos A’s de Oakland e Giants de São Francisco. O sismo durou 15 segundos. Os jogadores que se aqueciam em campo mal perceberam, mas muitos torcedores, ao deixarem o Candlestick Park, na confusão de uma fuga improvisada, com a partida adiada, tiveram suas rotas obstruídas. Casas do bairro de Marina afundaram no terreno arenoso. Um setor da Bay Bridge, entre São Francisco e Oakland, caiu, esmagando automóveis. Outro desabamento destruiu um longo trecho da movimentada Nimitz Freeway, em Oakland. Morreram 63 pessoas e as autoridades, bem ao jeito americano, trataram de fazer as contas do prejuízo: 6 bilhões de dólares.

Os A’s ganhariam o título por 4 a 0. Para São Francisco restaria um consolo estético: o elevado que acompanhava o perfil da baía, do bairro de Mission ao Fisherman’s Wharf, foi, por voto popular, botado abaixo. Descortinou-se, além do horizonte luminoso, o amplo calçadão onde os pedestres caminham hoje pisando em poemas.

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