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O sindicalismo chega ao Vale do Silício e conta com o apoio de Biden

O caminho é longo, mas os trabalhadores do Império parecem ter acordado de uma longa letargia

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por Clarissa Carvalhães, de Nova York

Em um ano, a Covid-19 matou mais de 500 mil norte-americanos e escancarou a desigualdade entre ricos e pobres no país – a maior entre todas as nações do G-7, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Na mesma semana em que cidadãos assistiram, impotentes, à proposta do aumento gradual do salário mínimo, de 7,25 para 15 dólares por hora, ser vetada também pela Câmara, após ser derrubada no Senado, a revista Forbes atualizou as fortunas e os lucros de 664 bilionários, entre eles Jeff Bezos, da Amazon, Larry Page, do Google, e Travis Kalanick, do Uber. Durante a pandemia, essa turma ficou 1,3 trilhão de dólares mais rica.

Na outra ponta da pirâmide, uma multidão se acotovela por uma oportunidade de emprego. Os últimos dados do Departamento do Trabalho mostram que mais de 76 milhões perderam o trabalho entre março de 2020 e janeiro deste ano. O número de desempregados passa de 10 milhões, embora muitos especialistas alertem para a subnotificação, pois, no fim dos primeiros trinta dias de 2021, segundo o próprio governo, 18,3 milhões receberam seguro-desemprego.

Em uma tentativa de apoiar, sobretudo, as comunidades mais atingidas pela pandemia e, consequentemente, mais pobres, o governo de Joe Biden conseguiu aprovar no sábado 27, sem o reajuste do salário mínimo, o Plano de Resgate Americano, um pacote de estímulo calculado em 1,9 trilhão de dólares. O projeto seguirá para o Senado e, se aprovado, vai destinar centenas de bilhões a programas de vacinação, apoio aos trabalhadores e um auxílio emergencial de 1,4 mil dólares aos mais necessitados.

O pacote tende a aliviar um problema que afeta a maior economia do mundo desde, ao menos, os anos 80 do século passado: a dificuldade crescente da classe trabalhadora para obter o mínimo necessário à sobrevivência. Segundo o Centro de Prioridades de Orçamento e Política, perto de 24 milhões de adultos relataram, nos primeiros meses de 2021, não ter, na semana anterior, comida suficiente para viver. Na primeira quinzena de janeiro, entre 7 milhões e 11 milhões de crianças viviam em casas onde não se alimentavam suficientemente, por causa das condições econômicas da família. Além disso, um em cada cinco locatários relatou estar com o aluguel atrasado.  

Não bastasse contar moedas para as despesas, o trabalhador da linha de frente ainda precisou brigar para, literalmente, sobreviver ao Coronavírus. Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças mostram que, em decorrência das discrepâncias sociais, raciais e de gênero, empregados com baixos salários, negros e mulheres, sofreram desproporcionalmente com a pandemia. Enquanto os latinos se infectaram mais com a Covid-19, os negros morreram da doença em número maior do que os brancos. 

É uma realidade de Nova York à Califórnia. Médicos e enfermeiros não tinham acesso a equipamentos básicos como luvas ou máscaras. Funcionários de empresas como a Amazon ou entregadores de comida e motoristas de aplicativo como o Uber passaram a se perguntar até onde valia a pena ir para manterem uma renda.   

Ainda em meados do ano passado, a insatisfação dos trabalhadores passou a despertar tímidos, mas significativos movimentos sindicais, durante décadas minados pelas grandes companhias e desacreditados pelos próprios empregados. Greves e paralisações tornaram-se raras ao longo das décadas, apesar das sucessivas crises. Segundo Nelson Lichtenstein, professor da Universidade da Califórnia-Santa Bárbara e um dos principais historiadores trabalhistas do país, a fórmula economicista foi desmentida pela história, pela política e pela ideologia. “Os sindicatos cresceram rapidamente na Grande Depressão dos anos 1930 e as greves eram ousadas e frequentes. Por outro lado, na década de 1990, quando o emprego estava crescendo, especialmente entre os trabalhadores do setor de varejo, hospitais e serviços de baixos salários, o sindicalismo teve poucos ganhos nos Estados Unidos e houve poucas greves vencedoras. Dito isso, teremos de medir se hoje é diferente”, pontua.   

O trabalhador, considera o acadêmico, tem pontos de vantagem nesse embate contra os empregadores. “Mesmo que o desemprego seja alto, a celebração cultural e social dos trabalhadores ‘essenciais’ e da ‘linha de frente’ dá a esse grupo amplamente desorganizado um ímpeto, autoconfiança e senso de integridade moral, alicerces para a ação coletiva.”  

Um episódio em Bessemer, cidade de 27 mil habitantes no estado do Alabama, tende a indicar o futuro dessa luta. Lá, uma votação pelos correios vai mostrar se os 6 mil trabalhadores de um depósito da Amazon vão escolher ou não formar um sindicato. A Justiça lhes concedeu um prazo de sete semanas para a consulta. Stuart Appelbaum, presidente do Sindicato de Varejo, Atacado e Loja de Departamentos, responsável por conduzir a campanha de sindicalização dos trabalhadores da região, está otimista e destaca que a ação foi inspirada pelo movimento Black Lives Matter: “Perto de 85% dos trabalhadores de Bessemer são negros. Sabemos que a melhor maneira de protegerem a si mesmos e a suas famílias é organizar um sindicato”.  O sindicalista prossegue: “Esse é um movimento que vai unir todos os trabalhadores, de todas as categorias. Ganhamos, inclusive, o apoio do presidente. Todos estão vendo o que está acontecendo no Alabama e acredito que vamos ser um exemplo e uma inspiração para outros”.

Em um pronunciamento em 28 de fevereiro, Joe Biden apoiou o movimento. No vídeo de pouco mais de dois minutos divulgado pela Casa Branca, o presidente dos EUA disse que “trabalhadores no Alabama, e em toda a América, estão votando sobre a possibilidade de organizar um sindicato em seu local de trabalho. É uma escolha de vital importância e que deve ser feita sem intimidação ou ameaças por parte dos empregadores”.  O democrata sabe que o sindicalismo é e será importante não apenas pelo fato de os sindicatos lutarem pelo aumento dos salários das categorias que representam, mas também por ser um contrapeso político ao poder das empresas. “Os sindicatos tendem para os democratas, e seus integrantes também, porque endossam e se beneficiam do impacto redistributivo de impostos progressivos, gastos sociais do governo e aplicação de leis trabalhistas, como licença médica e salário mínimo”, explica Lichtenstein. 

Ainda que o presidente não tenha mencionado a Amazon em seu discurso, a mensagem foi claramente direcionada à companhia, que, nos últimos dias, investiu pesado em ações antissindicais. Relatos de funcionários de Bessemer davam conta de que funcionários do alto escalão monitoravam simpatizantes do movimento até nas idas ao banheiro, em uma clara tentativa de coerção. Faixas contra a sindicalização foram espalhadas pelo depósito e até um site de conteúdo duvidoso foi criado para manter os funcionários fora dos debates. “A Amazon tem sob seu comando a cooperação coerciva de todos os seus supervisores de primeira linha, tem sofisticados escritórios de advocacia antissindicais a seu serviço e, no Sul, forças políticas poderosas são hostis ao sindicalismo. Portanto, fiquemos atentos”, alerta Lichtenstein.   

O ceticismo do professor não é gratuito. Se durante o período entre as décadas de 1950 e 1980 havia uma espécie de guerra de trincheiras entre capital e trabalho, atualmente as maiores empresas dos EUA não permitem sindicatos e se valem dos empregados como bem entendem. “Houve muito mais greves naquele período do que hoje e, mesmo que essas greves tivessem caráter rotineiro, elas mobilizaram os trabalhadores e deixaram claro que um conflito de classes ocorria. Acho que as corporações venceram. Mobilidade de capital, agressões da direita à legislação trabalhista, uma hostilidade gerencial mais determinada, redução do poder sindical e da filiação desde 1980… Hoje, os esforços provisórios de organização por pequenos grupos de trabalhadores recebem muita cobertura da mídia, porque são muito raros e incomuns. É como um homem morder um cachorro”, compara o acadêmico.   

Ainda que o tom do historiador soe pessimista, o despontar de movimentos sindicais em empresas como a Google, que reconhecidamente oferece salários competitivos, parecem mostrar que a organização dos empregados nos Estados Unidos vive um bom momento. Criado neste ano por um grupo de engenheiros da empresa de tecnologia, o Alphabet Workers Union bateu a marca de 800 integrantes. Uma batalha bem diferente daquela travada, desde o ano passado, pelos motoristas dos aplicativos Uber e Lyft, empenhados em derrubar a Proposição 22, uma medida na Califórnia que impede o acesso a um conjunto de vantagens, entre elas a garantia de ganhos sobre o tempo ou a gasolina gastos na espera entre as viagens, horas extras e licença médica remunerada. A medida, claro, atraiu a atenção de outras gigantes da tecnologia, que se mobilizam para estender as normas a outros estados.

Em nota enviada a CartaCapital, a Gig Workers Rising, organização que reúne os motoristas do Uber e Lyft, lembrou que “embora a pandemia Covid-19 tenha destacado que os trabalhadores sejam essenciais para o funcionamento do país, eles têm ativamente negado seu justo quinhão. Corporações como Uber e Lyft tentaram até mesmo enviar mensagens de apoio aos trabalhadores por meio de extensas campanhas publicitárias, negando acesso a seguro-desemprego e forçando-os a continuar trabalhando mesmo em meio a esta pandemia mortal”. A Amazon e a Uber têm um exército de advogados a seu dispor. Em notas à imprensa, as duas empresas negam a tentativa de intimidação dos funcionários. 

O caminho é longo, mas os trabalhadores do Império parecem ter acordado de uma longa letargia.

Publicado na edição n° 1147 de CartaCapital, em 4 de março de 2020

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